Quando o avô João lia o jornal, umas vezes trancado no escritório, outras refastelado na sua cadeira pessoal, na sala, dependendo da época do ano o estar junto da lareira ou das portas escancaradas para o alpendre meia-lua e o laranjal subsequente, nesses momentos de tiquetaqueado puro e simples, a nenhum dos miúdos que habitualmente circundavam pela residência era permitido o mais leve ruído que pudesse perturbar o ritual informativo do imperador.De Inverno, aquele era o período em que a avó achava por bem obrigar a pequenada a cumprir os deveres escolares. No Verão, todos eram enxotados para o quintalão, preferencialmente, para os fundos.Pois é como estão a imaginar, o avô não era um homem dado a brincadeiras ou outras intimidades com o sector juvenil da prole e muito menos era do género de apaparicar quem quer que fosse.Vendo-o hoje com os olhos de homem, tenho para mim que, para ele, os netos eram uma espécie de fatalidade com que tinha de conviver, como o preço a pagar pelo facto de ter desejado procriar. Restava-lhe minimizar os custos o que conseguia pela regra inquebrável da expressa proibição de lhe perturbarem o sossego.Por isso, quando nos perguntava algo respondíamos sempre em voz baixa e mesmo quando nos dirigia uma graça que nos levasse a sorrir, fazíamo-lo com o comedimento de quem sabia não poder dar largas a qualquer excesso ainda que pouco perceptível fosse.Lembro-me de correrias, na sua ausência, quer pelo prolongamento de brincadeiras de rua, quer pela prática de jogos de escondidas pelos dois pisos e sótão da mansarda. Estando ele em casa, reinava a mais completa quietude que, pela mundivisão oficial, era a melhor companhia da ordem impreterível ao bom e regular andamento das coisas.Ordens, na verdade era disso que se tratava. o avô dava-las e a ninguém passava pela cabeça não as cumprir.E, como soe dizer-se, havia-las para tudo e todos os gostos. Era para as refeições às tantas horas, para o encontro familiar meia hora antes de cada uma delas, para o café e os licores do serão a outras, sem contar com as inerentes ao funcionamento das parcelas domésticas que ficavam a cargo do pulso de ferro e língua sóbria da matriarca e aquelas que estavam directamente ligadas ao quotidiano do corpo, como o casaco ou o sobretudo apresentado à saída ou então os sapatos luzentes e outras coisas do género.O avô passava as manhãs no escritório da fábrica a dar conta dos seus negócios e se, por causa deles, não tinha que sair para lado nenhum, depois da sesta que se seguia ao almoço peniscava algo e lia o jornal que, geralmente, interrompia para falar com algum filho ou para as suas cogitações. À noite, só não seroava entre os seus quando os afazeres de provedor da Santa Casa lhe impunham cuidados.Ele sabia que devia ser assim e nunca consentiu que de outra forma fosse.Afinal ele cresceu rico e, tal como o seu pai, se por um lado lhe foi exigido que se preparasse para continuar a sê-lo, por outro, aprendeu a fazê-lo na preservação ortodoxa dos valores em que alicerçava o universo daquela cultura familiar e social.Logicamente, levava o seu e todos os outros papéis muito a sério e no que pessoalmente lhe dizia respeito, não prescindia de nenhuma das suas prerrogativas.Contudo, ao nível das fontes de reprodução da riqueza material, soube compreender e adaptar-se ao seu tempo. Herdou muitas terras, começou por ser iniciado nas artes de lavrador, mas, uma vez adulto, cabeça de casal e à frente dos seus cabedais e fazendas, teve o engenho de se converter em capitão de indústria, baptizando-se com a simples preparação de cortiça, mas depressa passando à sua transformação, com o acrescento da produção de colas e, com o tempo, a entrada em outros ramos que variaram do comércio e serviços aos transportes fluviais.Notável, na Vila, com a idade regressado a uma religiosidade fervorosa após os anos de jacobinismo de uma juventude republicana, o avô João foi durante muitos anos eleito para atender aos destinos da principal instituição de solidariedade social em todo o concelho, deixando bem patente o seu testemunho com a criação da ala hospitalar, onde teve o longo alcance de fazer construir um moderno bloco operatório que ainda hoje, prova a sua contribuição, apesar da placa alusiva há muito ter sido arrancada e extraviada.Mesmo tendo em conta a sua baixa estatura, sobressaía no mínimo trato, tanto pela segurança e serenidade que mostrava no falar e em todas as atitudes, como pela indumentária sempre escolhida ao nível dos melhores dias de festa.Nasceu e viveu naquela casa onde agora mora o meu tio Jofre, da qual saiu por moto próprio, alegadamente pelo desejo de maior sossego que os seus oitenta e poucos anos justificavam e também pelo facto de não querer sobrecarregar ninguém perante a possibilidade de necessitar de acompanhamento ou uma assistência sanitária mais personalizada.Por isso contratou o serviço de um quarto num lar da capital, a seu ver muito recomendável, coma direcção do qual negociou a autorização de entrar e sair quando quer, bem como o privilégio de poder passar temporadas em outros locais, sem com isso cair na situação de, eventualmente, poder perder o seu lugar cativo.É claro que vulgarmente é o avô que nos visita mas, por vezes, passam-se semanas e semanas em que ele se deixa ficar e, nessas ocasiões, são os parentes que, se o querem ver, se deslocam à sua presença.Só por uma única vez fiz essa peregrinação, numa tarde de sábado primaveril.Lá estava o avô João, o único homem saudável do convento - o outro que lá vive está permanentemente deitado devido a uma série de enfermidades - lá estava ele, dizia, para meu grande espanto todo sorrisos e mui sociável, no meio de um magote de senhoras com olhinhos brilhando de alegria.
Alvalade do Sado,
6 de Fevereiro de 1996
2 comentários:
Trata-se de um texto descritivo, muito bem escrito. Está bem construído, há um grande trabalho de observação por parte do narrador. A observação está excelente, pormenorizada, garanto que enquanto lia o texto conseguia visualizar tudo o que era descrito. No fim consegui rever o texto em imagens com toda a descrição que o narrador fez. Este texto fez-me lembrar o meu avô. Uma frase que sensibilizou bastante foi "Vendo-o hoje com os olhos de homem, tenho para mim que, para ele, os netos eram uma espécie de fatalidade com que tinha de conviver, como o preço a pagar pelo facto de ter desejado procriar." Parece-me traduzir a imagem que muitas pessoas - mais novas ou mais velhas - têm dos seus avós.
Faz uma excelente descrição do Avô João, um homem que se regia por determinados valores, de moral rígida, sempre dentro de estilo de vida para o qual o seu o havia preparado - como o texto o revela. Nota-se o grande carinho que o narrador, neto, nutre pelo seu avô, assim como os outros netos. Não sei se estou certa, mas parece-me que além do carinho existe uma grande admiração. Na minha opinião o texto está excelente, gostei "Da Tia Gracinda" mas gostei mais ainda do "Avô João".
Parabén ao autor, texto muito bem conseguido.
Sofia
Obrigada pelas palavras Princesa, e por uma leitura que tanto mais interessante quanto acerta em cheio na intensão com que a história foi escrita.
Desde já o meu melhor bem-haja pela conversa que certamente continuaremos a manter a respeito deste meu trabalho.
Tudo de bom para ti, Sofia
Luís
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