segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

BARCO DOS PIRATAS


Vamos pai! Vá… quero ver o barco dos piratas.”
Recordo-me de uma conversa longa e atribulada sobre olhos, navios, e batalhas. Insisti. Queria ver de perto o navio dos piratas.
Pai, onde está o barco?”. Puxava-lhe pelo braço, lançando-me para a janela já embaciada pelo vapor da minha ansiedade.As dedadas marcavam a direcção misteriosa. Pacientemente pedia-me para esperar: “só mais à frente, nas salinas, antes da GEFA… calma, espera mais um pouco”. Mas não, impossível esperar, já não suportava mais; o desejo era superior a qualquer impedimento racional.
Indolente, a Camioneta do Cândido Belo rodava ofegante as portadas castanhas do Forno da Cal. Espalhava à sua volta o verde-claro brilhante da sua presença, abandonando gente e mais gente nas várias paragens, raras mas definitivas. Era hora de trabalho nas fábricas incontáveis da vila de Alhos Vedros. Ao longe, as barcaças do Tejo, ao lado da Corticeira, carregavam-se a cortiça de mais uma jornada. De sacas à cabeça, homens iam e vinham, buscando os fardos pesados, que largavam nas fragatas com destino a Lisboa. “Têm calos como os burros… aqui” – exagerava o pai. “No pescoço aqui?” – perguntei-lhe.
No autocarro tudo normal, não fosse a passividade, a esperança e a vontade de chegar ao destino. Concentrados no final da viagem, os viajantes fixavam o olhar em frente, num silêncio compreensível, misturado com o ranger esforçado do motor já decrépito. De olhos fixos na janela, dei um salto acompanhado de um grito de alegria incontida: “olha olha é ali” e apontei o dedo indicador, erecto, que indicava a direcção do objecto desejado. Tinha de sair dali; era preciso ver mesmo lá de perto o barco pirata. Maldito autocarro que nunca mais pára.
Nesse dia compreendi que um autocarro é um meio e nunca um fim. É um instrumento para chegar e nunca uma espécie de sala de estar. Queria descer, queria chegar.
E tem piratas, não tem pai?” Subi no encosto do banco. Esgueirei-me para tocar à campainha, mas não consegui. “Não” - explicou o pai – “ os piratas não existem, percebes(?)… morreram todos”. Não ouvi com a devida atenção devida, mas ele continuou: “Isso dos piratas são histórias que se contam… e já não existem.” Negativo. Ouvi mas não gostei da explicação. Ignorei! O pai tem sempre razão, mas desta vez enganou-se – pensei. Ainda lhe respondi: “existem pois”. O que era realmente importante naquele momento era o barco dos piratas. Tudo o resto era supérfluo e vazio.
Bombaleando a máquina a tiracolo, o revisor percebeu a impaciência. Fixou o joelho no banco da frente em malabarismos de equilíbrio. Olhou-me e disparou um "psst psst" consolador. Pensei: nunca hei-de ser revisor. Andar e bombalear num corredor incerto e infindável, não, isso não. Libertou nota a nota de vinte escudos os dedos ocupados e guardou-as metodicamente na pequena mala de couro. Liberto esticou-me a mão oferecendo um “passou bem?”.
- “Tá ali, tas a ver? É aquele!”
- “Não é filho, aquele não é o navio dos piratas. É uma fragata. É um barco grande que leva cortiça para Lisboa.
O pai continuou, mas ficou uma imagem pouco clara da explicação. Não assimilei na totalidade a lógica do seu discurso. Aliás, acho que nem fez muito sentido; um barco dos altos mares a transportar cortiça. Cortiça? Não não me parecia fazer sentido. Ele que tudo sabia, como poderia estar enganado? Ficaram muitas dúvidas. Recordo ainda uma série infindável de perguntas, que lancei ofegante: “e o homem que lá está não pode ser um pirata? Porquê? E os homens que andam lá dentro não são aqueles assim… sem um olho?
Para mudar o rumo à conversa, o pai perguntou: “diz-me… a ver se sabes: como se chama um homem sem um olho?” A máquina a tiracolo apoderava-se da conversa, e soletrava: “za…za-ro-lho”
É um pirata” – disparei com toda a segurança.
Uma gargalhada efusiva e geral espalhou-se à minha volta. Neste momento já todos os viajantes participavam da minha humilhação. Estiquei a língua em sinal de desaprovação.
O veículo verde e branco parava na paragem da Corça. Todos me olhavam com um sorriso. Não cheguei a perceber se troçavam de mim ou se concordavam comigo. Não interessa. Estava prestes a ver os piratas. Isso sim é que me interessava realmente.
Olhei a senhora em frente, redobrada para trás em delírio boquiaberto. Desviei o olhar e repeti confiante: “é pirata, é mesmo, pronto”.

Ass: Dialogico Ponto Com

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