domingo, 28 de janeiro de 2007

Intimidades

QUE PENA TER SIDO

Bem, devo confessar que também eu fui marxista-leninista.
Não que veja isso como uma mácula na minha vida, ou aqui queira fazer a confissão do meu arrependimento.
Simplesmente encaro esse facto de uma maneira diferente. Vejo-o apenas como um dos muitos momentos que em conjunto perfazem o percurso da minha existência e uma vez que passou, a esse nível, tão ou tão pouco importante como quaisqueres outros, todos eles, por serem historiográficos, passíveis de racionalmente serem encarados e compreendidos.
É verdade, também eu fui marxista-leninista.
A afirmação é digna de registo pelo facto de eu ser e, provavelmente, sempre ter sido o oposto daquilo que poderemos destacar como o estereótipo do indivíduo do indivíduo feito à luz dessa cosmovisão e, mais relevante, dado as minhas ideias fundamentais sobre a vida da humanidade e até os mais decisivos valores com que parto para enfrentar as marés do quotidiano serem completamente incompatíveis com os pressupostos daquelas correntes políticas.
Olhando para trás com o alcance e a nitidez que a memória consente, posso identificar uma tríade que é constante nas minhas preocupações. Com efeito, encarando as alterações, na sua formulação, como o resultado directo do meu crescimento intelectual, basicamente permanecem as referências da liberdade, da solidariedade e do compromisso de combater a pobreza. Verdadeiramente, sempre foram estas as minhas principais motivações para eventuais movimentações cívicas de carácter político ou não. Seja como for, mentiria se o negasse ou fugiria à realidade se omitisse aquela opção pretérita.
Como um sujeito com índole e educação abertas, isto é, não assentes em dogmas nem em outras cartilhas que não alguns valores tidos por justos e bons, como uma pessoa assim pode ter querido um dia ser comunista –isto para usar a terminologia do marxismo-leninismo clássico ou seja, aquele que, vinda da tradição do bolchevismo da revolução russa, optou pelos pontos de vista chineses por ocasião do cisma que o vigésimo congresso do Partido Comunista da União Soviética provocou no movimento comunista internacional- eis uma pergunta interessante, possivelmente capaz de propiciar respostas com aplicações exteriores ao próprio indivíduo.
Porque fui marxista-leninista? Porque aderi ao marxismo-leninismo?
Ora porquê? Fui. Para mim é tudo quanto basta. Não me preocupo muito com essas razões. Fui, deixei de ser e acabou-se, ponto final. Nunca me pareceu chão que desse muita uva. Mas fui, tinha então quinze dezasseis anos, entre os meses de Outubro Novembro de setenta e quatro e a Primavera do ano seguinte, quando, por essa ordem, aderi e rompi com a referida ideologia.
Foi com a minha participação na comissão cultural da Velhinha, entre meados de Maio e o fim desse ano de setenta e quatro que eu concretizei aquela adesão. Embora tenha sido o Rui Madeira o principal mentor e impulsionador daquele organismo, desde cedo se formaram duas correntes distintas que partiam de pressupostos diferenciados. Ao fundador que achava que a comissão se deveria empenhar em apresentar realizações recreativas e de índole cultural para os sócios da colectividade, opunha-se o Henrique Cantante, jovem trabalhador nos Telefones de Lisboa e Porto, para quem aquela deveria ter um carácter essencialmente político e ideológico, acrescentava o Zé Martins que o secundava em tudo.
Sem o meu apoio e de um outro Rui Madeira, o Rui José, os pontos de vista que preponderavam eram os mais radicais.
Corolário da gracinha, recordo um convívio dançante, numa tarde de Domingo, abruptamente terminado em nome do combate aos comportamentos e hábitos burgueses, seguindo-se-lhe uma sessão de cantigas revolucionárias em que o agitador cantou desafinadamente a canção “Fogo”, de Tino Flores.
Contudo, nessa efervescência deu-se o meu abraço à ideologia redentora.
E na verdade, tudo parecia conforme com os meus mais profundos desejos. Pois não falavam os camaradas chineses em liberdade de pensamento e de crítica e não era em nome dessa liberdade que eles, a respeito do melhor caminho a seguir pelo socialismo, divergiam dos comunistas russos? E, afinal, pelo mui importante facto de aí acabar a pobreza, não era o socialismo uma sociedade mais avançada que a democracia, ou, como se dizia nesses dias ainda não muito doutrinados, a simples democracia? E que dizer da liberdade, esse paradigma, não seria só possível quando todos tivessem as mesmas condições para singrarem na vida? Lá havia a revista “Nova China” e o “Pequim Informa” para o confirmar e nos mostrar como o socialismo tinha feito milagres e, para além disso, toda uma série de publicações piratas que bem claro deixavam como os trabalhadores, ali, viviam num autêntico paraíso.
O resultado foi o tal mergulho.
O que posteriormente fui encontrando era a hipocrisia de muitos militantes mais responsáveis –ele havia o Mimoso que fechava a mulher em casa e saía para a vida do partido, onde, além das pinchagens, colagens e afins, procurava molhar o biso em qualquer situação que vislumbrasse poder entrar água por baixo das suas pernas.
Pior, para meu espanto, era a completa falta de liberdade e o reconhecimento que aquela gente pouco se importava com a melhoria da vida dos pobres, incomodando-os mais a riqueza da maioria privilegiada e parasitária.
Isto dando de barato o policiamento dos comportamentos pessoais, o que no meu caso poucos constrangimentos trouxe pelo facto de jamais ter militado em qualquer agrupamento político.
Entrei em ruptura e abandonei o marxismo-leninismo.
Na época, durante um curto período de meses, pensei em tornar-me anarquista.

Alhos Vedros/Alvalade do Sado
14 e 15 de Fevereiro de 1996

6 comentários:

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Nesse tempo, todos os jovens(ou quase todos)eram marxistas. Para além de uma forma de afirmação e de rebeldia contra os mais velhos, sentia-se a necessidade de participar na vida activa das vilas e cidades. E ai o Marxismo era a resposta mais óbvia e imediata nesses tempos.
Não esquecer que se viviam os momentos imediatamente a seguir ao 25 de Abril em que as posturas sociais e as reinvindicações eram imperativos de cidadnia. Era o MRPP, a UDP, o PCP e até a famosa FLAF (Frente de Libertação de Alhos Vedros), que davam o tom às conversas e indicavam o rumo a seguir; eram (vistas as coisas, com o devido tempo para melhor as pensar) ... eram uma espécie de ditaduras do pensamento, mascaradas com suposições de ideais de salvação do mundo e do povo.Recordo-me dos alunos da Escola Secundária Provisória da Moita subirem às mesas da sala de Alunos e gritarem: "Estamos de Greve". Um famoso membro da UEC (Juventude Comunista)apresentou em Plenário uma Lista de reinvindicações justas e execuíveis: Cadeiras estufadas para os alunos em todas as salas de aula, transportes gratuítos, a demissão de Professores que não se regessem pelas normas do Povo e o direito à Greve sempre que os alunos assim desejássem. Tudo se pronuciava em voz bem alta, com confirmações de "Já!" e "Em nome do Povo".

E depois havia a "Auto-Crítica", espécie de confissão dos pecados políticos cometidos (sem a presença do Padre), em actos de pequeno-burguês (muito censurados na altura), tipo, não comparecer na Reunião do Partido, uma conversa com o vizinho de partido diferente e de aparência burguesa, a compra de objecto de valor, que poderia chocar a sensibilidade proletária, etc, etc.

Sou da opinião de que foram tempos de crescimento e de amadurecimento colectivo. Toda a gente participava em algo: no Partido, nas Associações na Comissão de Moradores ou em serviços de ajuda à Comunidade. Pena que não se tenham aproveitado essas experiências e que a História se tenha que repetir, ao ponto de sonharmos com a nova Revolução.

Quanto à FLAV, muito se poderia dizer, mas sobre isso o amigo Luís Gomes sabe muito mais que eu. Seja como for, essa organização deixou marcas nas nossas mentes, por tudo o que representava; na verdade, nem existia formalmente, mas batia-se por ideais de autonomia de de Alhos Vedros. Pode parecer ridículo, mas fazia sentido no seu tempo; entre as principais palavras de ordem, contam-se as seguintes:
- Pela autonomia de Alhos Vedros!
- Contra o Domínio exterior!
- Não à Baixa da Banheira!

Nesses tempos a entrada na União Europeia era uma impossibilidade estratégica. Alhos Vedros nunca receberia a Esrela Azul,com país federado.

Luís Mourinha

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Um desafio ao Alvalade do Sado:

E agora o que és?
Continuas Anarquista?

(lol)

Um abraço,
Luís Mourinha

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Já não, meu amigo, infelizmente se não existirem sistemas de regras e de segurança, o humano ainda não conseguiria -será que alguma vez conseguirá? Será que alguma vez conseguiu, no passado caçador e recolector?- viver sem o risco permanente de ser esmagado pelos mais fortes e poderosos. Mas não sei porquê, não me desgosta muito pensar que ainda sou capaz de olhar o negrume do mundo envolvente com a irreverência desses dias.
É incrível como é que em nome da liberdade se pretendia ter o direito de dizer às pessoas como elas se deveriam comportar e pensar. Nesse aspecto, para uns houve laboratório de crescimento democrático e para outros o contrário e até temos que ir convivendo e aturando a astúcia daqueles para quem ali o laboratório funcionou como primeiro degrau de carreiras na arte de bem se servir servindo toda a cela.
Enfim... Acabou por ser uma história triste.
Já a da FLAV saíu directamente de uma brincadeira do Rui Madeira, o Comandante da Marinha Mercante, irmão do Jorge e de uma moça cujo nome já não recordo mas que era pianista e chegou a ter uma banda com o Sidónio que já faleceu. O Rui e o teu vizinho de infância, o Zé Martins, ainda antes do vinte e cinco de Abril tinham uma brincadeira e, que diziam ter fundado o Movimento de Libertação de Alhos Vedros com sede -na época elas ainda acostavam ao cais- numa fragata. Era uma brincadeira para dizerem que tinham que fazer coisas que acabassem com a tirania que a todos asfixiava e a eles, rapazes de barba a rebentar pelas costuras e com opções de começo de vida para tomar, deveria ainda mais doer de tanto aperto com o destino bélico que os esperava. Assim surgiu uma brincadeira entre eles que foi da Academia onde se encontravam e conviviam para a Vélhinha, onde o Rui fundou a Comissão Cultural de que fala este painel do "Que Pena Ter Sido". Depois outros entraram na brincadeira e quando aquele jovem generoso partiu apara a sua aventura marítima, no fim de setenta e quatro, a memória ficou só entre mim, o Rui José Madeira -o outro Rui Madeira, filho do Sr. Rui- da Cristina Nunes e da Rosinha (de Luxemburgo) Xufre que também faziam parte da dita Comissão. A partir daí foi uma brincadeira e o nome mudou pela evolução dos tempos; era mais revolucionária uma frente que um movimento. Enfim... Acabou por ser uma história divertida desses tempos de irreverência anárquica. Afinal, a libertação era relativa à hipocrisia e à ignorância e outros atavismos em que nos sentíamos viver envolvidos. Aí, o bairrismo era meramente folclore de suporte, a guerra era outra.
Mas é amigo Mourinha, contos de outros velhos que ainda não somos mas que vimos de um mundos que já não existem e em certos aspectos, digo eu, ainda bem.
Só lamento que trinta e três anos de democracia tenham conseguido tão pouco em termos de cultura cívico e pior que isso, tanto tenham contribuido para estiolar aquela que existia em muitas áreas da vida social portuguesa. São as obras dos democratas que fundaram um regime em aliança com o aparato das acções de uma rede bombista que matou e nunca foi julgada, tirando daí todos os rabos de palha que atrofiaram o poder de estado que, de tão debilitado, jamais conseguiu opor-se aos polvos corruptos que submergiram por completo as capacidades de levantar vôo do nosso tecido económico, já deram cabo do estado de direito entre nós e preparam-se para nos deixar uma liberdade à mercê das sedes de cosas nostras com sotaque... Lusitano, não é? E nós sem nada mais que o pau para atirar ao gato.
Um abraço Mourinha

Luís Foch

PS
Que tal jantarmos na próxima 5ª. Feira? 6ª. é o dia de anos da Margarida e no Sábado ela diz que vai jantar com duas amigas depois do cinema no Fórum Montijo ou no de Alamada, consoante o filme que queiram ver, pelo que terei que a ir buscar, coisa que me obrigaria a interromper a conversa. Se não der para esta quinta-feira, terá que ser para sexta dia nove, pois no Sábado 10, eu e o Luís Carlos já temos marcado o habitual jantar com o João, o Daniel e o Toninho.
Por mim, esta quinta ou a sexta seguinte estão bem.

ATIREI O PAU AO GATO disse...

2º. PS

Fiquei com curiosidade. Porquê um comentário apagado?

Luís Foch

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Pois é grande Luís, eu sabia que tu sabias sobre a Frente de Libertação. Ainda falta escrever essa Estória, não achas?

O que é facto é que a partir de uma brincadeira (como tu disseste)fica uma imagem que passou de geração em geração, em que de certa forma se transmitia uma certa força e identidade de Alhos Vedros, como uma realidade única, fundada em raízes culturais e sociais muito fortes.

É interesante que atrás destas Estórias venham pessoas, que são o mais importante disto tudo. Com este teu relato fizeste-me lembrar de pessoas, que já não vejo há séculos. Nem sabia do Sidónio. Que lhe aconteceu?

Na Quinta tenho um Jantar e na Sexta ainda não sei. Mas se não for agora fica para outro dia.

Resposta ao P.S. do teu P.S. (salvo seja): apaguei aquele comentário que tinha acabado de escrever porque tinha uma Gaffe de português.

Luís Mourinha