sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

INTIMIDADES

Por
Sebastião Sorumenho
Para aAlexandra Grave,
poetisa da cor,todo o amor que haja nesta vidapara ti.

OS AMORES PERFEITOS

Nascem, crescem, florescem, alegram-nos o olhar e quando o Sol ajuda as cores a brilhar,o nosso olhar insiste para neles poisar.Quando a Primavera acaba deixam sair a semente,e quando o Sol ajudae a chuva, e o ar…nascem novamente para nos encantar.Morrem depressa os amores perfeitos mas sempre voltam a nascer.
João Martinho

A TIA ENGRÁCIA
Quanto à minha tia Engrácia sempre simpatizei com a sua maneira de ser que a faz andar de cabeça levemente inclinada sobre a direita, para olhar o semelhante pelo óculo esquerdo, sem com isso omitir os sorrisos da cortesia pelos cruzamentos do dia a dia. Aquele seu de quem por vezes canta na rua, aparentemente vivendo nas nuvens mas que eu sei, pois a conheço bem, impreterivelmente dado a admirar as colorações e figurações da atmosfera, ou quaisqueres eventos da vida envolvente.Diz minha mãe que ela sempre foi assim, desde muito pequenina dada a saltitar pelos passeios, passando tão facilmente de brincadeiras a canções, como repentinamente se podia perder numa erva brotando pela ranhura de um muro ou, tão só, em coisas do género de uma beata arrastada pela corrente pluviosa em busca de se cascatear pelas sarjetas.“-Mas tinha uma coisa boa. Nunca deixava de dar as saudações a ninguém.”E mais não fazia que a sua obrigação que, nestas coisas, os meus avós paternos caracterizavam-se por uma exigência sem memória de qualquer concessão à facilidade.Pois não foi isso de em praticamente tudo o que importa levar a sua à vante.O tio Lino ainda hoje se ri ao contar o teatro de pé-de-vento com que a minha tia arrancou à tradição o beneplácito para estudar no liceu, então uma gaiatinha magricela e voz aflautada, com a impensável energia de bater o pé e ameaçar, vejam só, pôr termo à vida em nome da sede de sabedoria.Nem outra coisa seria de esperar. Fez os estudos com distinção e até que se formou em Histórico-Filosóficas, nunca teve a mais leve reprovação.O Dr. Cabrita, o meu pediatra e que tinha acabado o sétimo ano com a minha tia, perguntava sempre por ela e por vezes falava do seu nariz no ar que sendo leal e prestável com os amigos, fazia dos rapazes lacaios e tratava as outras miúdas como se elas tivessem que aprender constantemente a atravessar a estrada.Logicamente impregnada da sua personalidade de quem vive na Lua, condizente com a sua capacidade de ler e interpretar os mestres em volumes raros para a sua idade.É o lado intelectual da tia, aquele que a fez ser uma professora exigente com o seu próprio trabalho, a ponto de se poder gabar de nunca ter faltado aos alunos que, ao longo de uma trintena, muitos e variados foram, embora todos possam recordar-lhe as trocas de turmas e de salas, ou as escorregadelas e encontrões em cadeiras e mesas por via do entusiasmo com a prelatória, mas também o prazer de a ouvir fazer simples o que antes parecia complicado e lhes fazer entender aquilo que antes, por desconexo, soava a incompreensível.Ali tinha o seu Olimpo, onde podia dar largas ao seu gosto de cogitar, sem se preocupar com os pontos de vista da plateia sobre o seu comportamento, pois apesar de no fim da adolescência ter provocado um baque na minha querida avó, por usar calças e dançar o twist, até ela teve de ceder em levar a Jórgina para Coimbra, se não como tutora, pelo menos como ama de companhia, pois só assim o pai lhe permitiu uma aventura daquelas.Lá passou cinco anos entre os livros e o quarto, de onde voltou mulher para unir o coração ao filho de um ourives que seguindo as pegadas do progenitor, acabou por fazer a fortuna que melhor amelaçou uma felicidade que ainda hoje dura e que só não terá sido completa por que uma papeira traiçoeira ceifou ao rapaz a possibilidade de reproduzir os seus genes.Claro que lá caiu o Carmo e a trindade, mas nem as ameaças de expulsão e corte na herança demoveram a vontade da minha tia em não contrair matrimónio. E como na verdade os anos passaram sem que o casal desse o menor sinal de alarme, tudo acabou por ficar bem e todos fizeram de conta que a situação estava conforme às suas crenças e valores.Nunca ninguém soube explicar estas coisas da tia Engrácia, mas o meu tio João que Deus tem, o último da fratria, costumava defender a ideia que simplesmente era para ali que lhe dava.“-A Gracinha sempre teve… Quer dizer. Sempre teve aquele seu jeito muito partícula. Então não foi ela que chamou senhor preto ao manequim que estava à entrada da Casa Africana, para lhe perguntar onde era a secção de roupas para homem?”Minha querida tia Engrácia que agora se reformou e vive em viagens com o seu amor e amante de uma vida, talvez por isso, estando na melhor forma de sempre.E por vezes é bom sabem que as pessoas, em alguns aspectos, não mudam, pois assim é mais fácil compreendê-las e saber distinguir quando elas nos são amistosas ou não.Só por isso a senhora Dona Chica Dias, a querida Chiquinha, amiga de sempre, continuou choramingando a sua dor e se agarrou ao pescoço da minha tia, na noite do velório ao cadáver do marido, depois dela ter entrado com o seu semblante grave e de, com lágrimas nos olhos, ter dito em voz alta:
“-Ai querida. Os meus parabéns.
Sebastião Sorumenho
Alhos Vedros, 2 de Fevereiro de 1996

Sem comentários: