segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

INTIMIDADES


por

Sebastião Sorumenho


Para a
Alexandra Grave,
poetisa da cor,
todo o amor que haja nesta vida
para ti.


OS AMORES PERFEITOS
Nascem, crescem, florescem
alegram-nos o olhar
e quando o Sol ajuda
as cores a brilhar,
o nosso olhar insiste
para neles poisar.

Quando a Primavera acaba
deixam sair a semente,
e quando o Sol ajuda
e a chuva, e o ar…
nascem novamente
para nos encantar.

Morrem depressa os amores perfeitos
mas sempre voltam a nascer.

João Martinho


A TIA ENGRÁCIA

Quanto à minha tia Engrácia sempre simpatizei com a sua maneira de ser que a faz andar de cabeça levemente inclinada sobre a direita, para olhar o semelhante pelo óculo esquerdo, sem com isso omitir os sorrisos da cortesia pelos cruzamentos do dia a dia. Aquele seu de quem por vezes canta na rua, aparentemente vivendo nas nuvens mas que eu sei, pois a conheço bem, impreterivelmente dado a admirar as colorações e figurações da atmosfera, ou quaisqueres eventos da vida envolvente.
Diz minha mãe que ela sempre foi assim, desde muito pequenina dada a saltitar pelos passeios, passando tão facilmente de brincadeiras a canções, como repentinamente se podia perder numa erva brotando pela ranhura de um muro ou, tão só, em coisas do género de uma beata arrastada pela corrente pluviosa em busca de se cascatear pelas sarjetas.
“-Mas tinha uma coisa boa. Nunca deixava de dar as saudações a ninguém.”
E mais não fazia que a sua obrigação que, nestas coisas, os meus avós paternos caracterizavam-se por uma exigência sem memória de qualquer concessão à facilidade.
Pois não foi isso de em praticamente tudo o que importa levar a sua à vante.
O tio Lino ainda hoje se ri ao contar o teatro de pé-de-vento com que a minha tia arrancou à tradição o beneplácito para estudar no liceu, então uma gaiatinha magricela e voz aflautada, com a impensável energia de bater o pé e ameaçar, vejam só, pôr termo à vida em nome da sede de sabedoria.
Nem outra coisa seria de esperar. Fez os estudos com distinção e até que se formou em Histórico-Filosóficas, nunca teve a mais leve reprovação.
O Dr. Cabrita, o meu pediatra e que tinha acabado o sétimo ano com a minha tia, perguntava sempre por ela e por vezes falava do seu nariz no ar que sendo leal e prestável com os amigos, fazia dos rapazes lacaios e tratava as outras miúdas como se elas tivessem que aprender constantemente a atravessar a estrada.
Logicamente impregnada da sua personalidade de quem vive na Lua, condizente com a sua capacidade de ler e interpretar os mestres em volumes raros para a sua idade.
É o lado intelectual da tia, aquele que a fez ser uma professora exigente com o seu próprio trabalho, a ponto de se poder gabar de nunca ter faltado aos alunos que, ao longo de uma trintena, muitos e variados foram, embora todos possam recordar-lhe as trocas de turmas e de salas, ou as escorregadelas e encontrões em cadeiras e mesas por via do entusiasmo com a prelatória, mas também o prazer de a ouvir fazer simples o que antes parecia complicado e lhes fazer entender aquilo que antes, por desconexo, soava a incompreensível.
Ali tinha o seu Olimpo, onde podia dar largas ao seu gosto de cogitar, sem se preocupar com os pontos de vista da plateia sobre o seu comportamento, pois apesar de no fim da adolescência ter provocado um baque na minha querida avó, por usar calças e dançar o twist, até ela teve de ceder em levar a Jórgina para Coimbra, se não como tutora, pelo menos como ama de companhia, pois só assim o pai lhe permitiu uma aventura daquelas.
Lá passou cinco anos entre os livros e o quarto, de onde voltou mulher para unir o coração ao filho de um ourives que seguindo as pegadas do progenitor, acabou por fazer a fortuna que melhor amelaçou uma felicidade que ainda hoje dura e que só não terá sido completa por que uma papeira traiçoeira ceifou ao rapaz a possibilidade de reproduzir os seus genes.
Claro que lá caiu o Carmo e a trindade, mas nem as ameaças de expulsão e corte na herança demoveram a vontade da minha tia em não contrair matrimónio. E como na verdade os anos passaram sem que o casal desse o menor sinal de alarme, tudo acabou por ficar bem e todos fizeram de conta que a situação estava conforme às suas crenças e valores.
Nunca ninguém soube explicar estas coisas da tia Engrácia, mas o meu tio João que Deus tem, o último da fratria, costumava defender a ideia que simplesmente era para ali que lhe dava.
“-A Gracinha sempre teve… Quer dizer. Sempre teve aquele seu jeito muito partícula. Então não foi ela que chamou senhor preto ao manequim que estava à entrada da Casa Africana, para lhe perguntar onde era a secção de roupas para homem?”
Minha querida tia Engrácia que agora se reformou e vive em viagens com o seu amor e amante de uma vida, talvez por isso, estando na melhor forma de sempre.
E por vezes é bom sabem que as pessoas, em alguns aspectos, não mudam, pois assim é mais fácil compreendê-las e saber distinguir quando elas nos são amistosas ou não.
Só por isso a senhora Dona Chica Dias, a querida Chiquinha, amiga de sempre, continuou choramingando a sua dor e se agarrou ao pescoço da minha tia, na noite do velório ao cadáver do marido, depois dela ter entrado com o seu semblante grave e de, com lágrimas nos olhos, ter dito em voz alta:
“-Ai querida. Os meus parabéns.”

Sebastião Sorumenho
Alhos Vedros, 2 de Fevereiro de 1996

5 comentários:

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Mais uma Estória fantástica!

Ass: Luís Mourinha

Gi disse...

A riqueza das ricas pessoas é mais "rica" do que a das pessoas ricas. O Sebastião foi um afortunado por ter uma tia assim.
Uma ternura esta história
Noite feliz

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Viva Mourinha!

Um abraço, antes de tudo que desde a homenagem dos vinte anos da CACAV não mais te vi. Fica-te bem este estar aqui com o amigo Luís Santos e para que Luíses não faltem, aqui estou eu, o filho de Foch, para lhes oferecer os resultados da minha vidinha de bom rapaz, mas isso tanto faz.
Ainda bem que gostaste e espero que gostes do que se vai seguir que será dentro desta mems linha. Mais à frente começarás a perceber tudo o que se passa e no fim creio que tudo ficará claro, título e tudo. Até, haja gozo na leitura e que a paz esteja contigo, meu velhíssimo -oh jovem, olha que esta não é para me fazer mais novo- amigo.
Como está o teu pai e a tua mãe? Não mais os vi. Espero que estejam com saúde.
Um abraço
Luís Foch

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Viva Gi!
Se fosse noutros tempos e noutras sociedades, com a dimensão da dívida acumulada, acabaria por ficar seu escravo. A sua bondade para comigo é tão, tão grande que eu ficarei seu fiel servidor para o resto dos meus dias. Se nunca me tratar mal, terá aqui alguém para quem os seus desejos serão ordens a que jamais poderei deixar de obedecer. Não tenho como lhe retribuir tamanha gentileza, mas como sou descarado e preciso da sua opinião, arrisco a correr a deselegância de lhe pedir o reforço deste favor. Mas isso fá-lo-ei no seu espaço. Como vou ficar retido pelo trabalho até altas horas do dia -provavelmente da noite também- não sei se o farei ainda hoje, caso isso não possa acontecer, mas amanhã será com toda a certeza.
Até lá, por hoje um resto de dia cheio de encantos -azuis. Sempre, o melhor que haja nesta vida para si, Gi
Luís F. de A. Gomes

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Meu querido amigo, só agora consegui reler este teu delicioso conto. Escrita arguta, malabarista, contorno de inegáveis capacidades literárias.

A querida Tia Engrácia, ou melhor, tanto quanto me é dado a perceber, a Tia Engrácia que está por detrás da Tia Engrácia, sonhada, arquitectada, recriada. Enfim, uma Tia Engrácia às tuas medidas.

A popular e simples Tia Engrácia que eu aproveito para recordar hoje aqui com muito carinho, o carinho que os meus olhares sempre se lhe dirigiram à medida que me fui fazendo homem (enfim, apesar de tudo, agora já me sinto um homem, embora a alma teime em não crescer e ficar sempre criança).

Junto-me, assim, a ti neste recuerdo e homenagem, porque a Tia Engrácia, dentro daquela sua reconhecida humildade foi, sem dúvidas, uma mulher que simplesmente se cumpriu, e muito bem.

Luis Carlos