sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

CASAR EM ALHOS VEDROS

Estava tudo combinado. Ao cair da noite, o táxi do Manuel Ropiu parava à porta do número 44 da rua do Polígono. Ele esperava-a. Logo que saísse de casa, o táxi rolaria para o desconhecido, luzes nos mínimos, sem dar nas vistas.
Eram dezoito horas do dia 21 de Fevereiro de 1960, dia de chuva, com a noite a marcar presença. Ela saia da Costura e acompanhada pela prima Lucinda dirigia-se a casa, onde deixara uma Carta de despedida: "não se preocupem comigo e não me procurem, pois vou ter com quem gosto"
Ele esperava dentro do veículo. Tinha de ser rápido! “Depressa! Para a estação de Bombel”. O nervosismo de uma fuga contrabalançava com um esperança indefinida. Misto de sentimentos, medo e esperança, insegurança e verdade…tudo ao mesmo tempo, confuso, mas promissor. Juntos, apoiados no medo, abriam um novo trilho: um caminho a dois e um misto de abandonos inconfessáveis. Para trás, ficavam as resistências a um namoro proibido, enjeitado pelos pais, mas assumido pelos próprios como opção legítima de vida. Cada vez mais longe, ao ritmo do táxi, ficava um Alentejo preconceituoso e impeditivo.
Não há tempo a perder…o comboio não espera”... "mas… e o sapato?” Perdeu, caiu. A agitação do momento não deu tempo… esgueirou-se num último esforço de o alcançar. Gesto imprudente! O que estava combinado no maior dos secretismos, foi descoberto. A Vitália viu, viu tudo: “a filha da Zalinda fugiu de casa”.
Deixa”, disse ele, “compramos novos”. Estas palavras compensaram o deslize e dava novo ânimo à viagem. Ele trataria da compra. Que importância teria um sapato, se o compararmos com o raio da terra? A imensidão do momento não se compadecia com pormenores insignificantes. Para trás ficava a ficção realista de sapato perdido, a descoberta de Vitália, as angústias, os impedimentos e um Alentejo dominado por preconceitos, enfim, memórias de uma vida difícil de rejeições e obstáculos.
Já no Comboio para confortar e para ganho de coragem, ele acrescentava: “Casamos em Alhos Vedros… começamos tudo de novo. Os teus pais assim escolheram. E sabes… não somos os primeiros a fugir. Muita gente vai para lá, há mais trabalho… na CUF, na CP . Aqui nada conseguiríamos, aqui trabalha-se toda a vida na cortiça
A avaliar pelo silêncio, ela parecia concordar, comprometendo-se na obsessão de ocultar um pé nu, que só por si denunciava a fuga.
Que viagem memorável! A angústia de uma fuga proibida, compensada pela esperança de uma vida a dois. Barreiro… Alhos Vedros, a proximidade com Lisboa, tudo prometia neste mundo admiravelmente novo. Novo, mas assustador, assim como assusta tudo o que é novo e desconhecido. Mas a escolha estava feita e os pais dela não compreenderiam. Que aflição, essa sensação terrifica de fugir para a liberdade.
Descalça, escondia a confusão do momento. Sem sapatos não somos gente.
Apearam-se em Alhos Vedros, já de manhã. O dia nascia ao ritmo de uma nova vida. Mas estava tudo planeado. Já tinham casa e sustento. De gravata deslocada e gabar dine dobrada no braço esquerdo, limpava o suor incontido de uma longa caminhada.
Minutos depois estava de volta à Estação prometida, trazendo consigo uma caixa branca por abrir. “Toma, calça-te. A partir de agora, nada temos a temer".
Vamos pai! Vá… quero ver o barco dos piratas.”
Recordo-me de uma conversa longa e atribulada sobre olhos, navios, e batalhas. Insisti. Queria ver de perto o navio dos piratas.
Pai, onde está o barco?”. Puxava-lhe pelo braço, lançando-me para a janela já embaciada pelo vapor da minha ansiedade. As dedadas marcavam a direcção misteriosa. Pacientemente pedia-me para esperar: “só mais à frente, nas salinas, antes da GEFA… calma, espera mais um pouco”. Mas não, impossível esperar, já não suportava mais; o desejo era superior a qualquer impedimento.
Indolente, a Camioneta do Cândido Belo rodava ofegante as portadas castanhas do Forno da Cal. Espalhava à volta o verde-claro brilhante da sua presença, abandonando gente e mais gente nas várias paragens, raras mas definitivas. Era hora de trabalho nas fábricas incontáveis da vila de Alhos Vedros. Ao longe, as barcaças do Tejo, ao lado da Corticeira, carregavam-se a cortiça de mais uma jornada. De sacas à cabeça, homens iam e vinham, buscando os fardos pesados, que largavam nas fragatas com destino a Lisboa. “Têm calos como os burros… aqui” – exagerava o pai. “No pescoço ai?” – perguntei-lhe.
No autocarro tudo normal, não fosse a passividade, a esperança e a vontade de chegar ao destino. Concentrados no final da viagem, os viajantes fixavam o olhar em frente, num silêncio compreensível, misturado com o ranger esforçado do motor já decrépito. De olhos fixos na janela, dei um salto acompanhado de um grito de alegria incontida: “olha é ali” e apontei o dedo indicador, erecto, apontava na direcção do objecto desejado. Tinha de sair dali; era preciso ver mesmo lá de perto o barco pirata.
Nesse dia compreendi que um autocarro é um meio e nunca um fim. É um instrumento para chegar e nunca uma espécie de sala de estar. Queria descer, queria chegar. “E tem piratas, não tem pai?” Subi no encosto do banco. Esgueirei-me para tocar à campainha, mas não consegui. “Não” - explicou o pai – “ os piratas não existem, percebes(?)… morreram”. Não ouvi com a atenção devida, mas ele continuou: “Isso dos piratas são histórias que se contam… e já não existem.” Negativo. Ouvi mas não gostei da explicação. Ignorei O pai tem sempre razão, mas desta vez – pensei. Ainda lhe respondi: “existem pois”. Importante naquele momento era o barco com piratas. Tudo o resto era supérfluo e vazio.
Bom baleando a máquina a tiracolo, o revisor percebeu a impaciência. Fixou o joelho no banco da frente em malabarismos de equilíbrio. Olhou-me e disparou um psst psst consolador. Pensei: nunca hei-de ser revisor. Andar e bombalear num corredor incerto e infindável, não isso não. Libertou nota a nota de vinte escudos, os dedos ocupados e guardou-as metodicamente na pequena mala de couro. Liberto esticou-me a mão oferecendo um “passou bem?”.
- “Tá ali, tas a ver? É aquele!”
- “Não é filho, aquele não é o navio dos piratas. É uma fragata. É um barco grande que leva cortiça para Lisboa.”
O pai continuou, mas ficou uma imagem pouco clara da explicação. Não assimilei na totalidade a lógica do seu discurso. Aliás, acho que nem fez muito sentido; um barco dos altos mares a transportar cortiça. Ele que tudo sabia, como poderia estar enganado? Ficaram muitas dúvidas. Recordo ainda uma série infindável de perguntas, que lancei ofegante: “e o homem que lá está não pode ser um pirata? Porquê? E os homens que andam lá dentro não são aqueles assim… sem um olho?
Para mudar o rumo à conversa, o pai perguntou: “diz-me … a ver se sabes: como se chama um homem sem um olho?
A máquina a tiracolo apoderava-se da conversa, e soletrava: “za…za-ro-lho
É um pirata” – disparei com toda a segurança.
Uma gargalhada efusiva e geral espalhou-se à minha volta. Neste momento já todos os viajantes participavam da minha humilhação. Estiquei a língua em sinal de desaprovação.
Olhei a senhora em frente, redobrada para trás em delírio boquiaberto. Desviei o olhar e repeti confiante: “é pirata, é mesmo, pronto

Escrito em Nov. 1989
Ass: Dialógico Ponto Com

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