sábado, 13 de janeiro de 2007

INTIMIDADES

O AVÔ JOÃO

Quando o avô João lia o jornal, umas vezes trancado no escritório, outras refastelado na sua cadeira pessoal, na sala, dependendo da época do ano o estar junto da lareira ou das portas escancaradas para o alpendre meia-lua e o laranjal subsequente, nesses momentos de tiquetaqueado puro e simples, a nenhum dos miúdos que habitualmente circundavam pela residência era permitido o mais leve ruído que pudesse perturbar o ritual informativo do imperador.
De Inverno, aquele era o período em que a avó achava por bem obrigar a pequenada a cumprir os deveres escolares. No Verão, todos eram enxotados para o quintalão, preferencialmente, para os fundos.
Pois é como estão a imaginar, o avô não era um homem dado a brincadeiras ou outras intimidades com o sector juvenil da prole e muito menos era do género de apaparicar quem quer que fosse.
Vendo-o hoje com os olhos de homem, tenho para mim que, para ele, os netos eram uma espécie de fatalidade com que tinha de conviver, como o preço a pagar pelo facto de ter desejado procriar. Restava-lhe minimizar os custos o que conseguia pela regra inquebrável da expressa proibição de lhe perturbarem o sossego.
Por isso, quando nos perguntava algo respondíamos sempre em voz baixa e mesmo quando nos dirigia uma graça que nos levasse a sorrir, fazíamo-lo com o comedimento de quem sabia não poder dar largas a qualquer excesso ainda que pouco perceptível fosse.
Lembro-me de correrias, na sua ausência, quer pelo prolongamento de brincadeiras de rua, quer pela prática de jogos de escondidas pelos dois pisos e sótão da mansarda. Estando ele em casa, reinava a mais completa quietude que, pela mundivisão oficial, era a melhor companhia da ordem impreterível ao bom e regular andamento das coisas.
Ordens, na verdade era disso que se tratava. o avô dava-las e a ninguém passava pela cabeça não as cumprir.
E, como soe dizer-se, havia-las para tudo e todos os gostos. Era para as refeições às tantas horas, para o encontro familiar meia hora antes de cada uma delas, para o café e os licores do serão a outras, sem contar com as inerentes ao funcionamento das parcelas domésticas que ficavam a cargo do pulso de ferro e língua sóbria da matriarca e aquelas que estavam directamente ligadas ao quotidiano do corpo, como o casaco ou o sobretudo apresentado à saída ou então os sapatos luzentes e outras coisas do género.
O avô passava as manhãs no escritório da fábrica a dar conta dos seus negócios e se, por causa deles, não tinha que sair para lado nenhum, depois da sesta que se seguia ao almoço peniscava algo e lia o jornal que, geralmente, interrompia para falar com algum filho ou para as suas cogitações. À noite, só não seroava entre os seus quando os afazeres de provedor da Santa Casa lhe impunham cuidados.
Ele sabia que devia ser assim e nunca consentiu que de outra forma fosse.
Afinal ele cresceu rico e, tal como o seu pai, se por um lado lhe foi exigido que se preparasse para continuar a sê-lo, por outro, aprendeu a fazê-lo na preservação ortodoxa dos valores em que alicerçava o universo daquela cultura familiar e social.
Logicamente, levava o seu e todos os outros papéis muito a sério e no que pessoalmente lhe dizia respeito, não prescindia de nenhuma das suas prerrogativas.
Contudo, ao nível das fontes de reprodução da riqueza material, soube compreender e adaptar-se ao seu tempo. Herdou muitas terras, começou por ser iniciado nas artes de lavrador, mas, uma vez adulto, cabeça de casal e à frente dos seus cabedais e fazendas, teve o engenho de se converter em capitão de indústria, baptizando-se com a simples preparação de cortiça, mas depressa passando à sua transformação, com o acrescento da produção de colas e, com o tempo, a entrada em outros ramos que variaram do comércio e serviços aos transportes fluviais.
Notável, na Vila, com a idade regressado a uma religiosidade fervorosa após os anos de jacobinismo de uma juventude republicana, o avô João foi durante muitos anos eleito para atender aos destinos da principal instituição de solidariedade social em todo o concelho, deixando bem patente o seu testemunho com a criação da ala hospitalar, onde teve o longo alcance de fazer construir um moderno bloco operatório que ainda hoje, prova a sua contribuição, apesar da placa alusiva há muito ter sido arrancada e extraviada.
Mesmo tendo em conta a sua baixa estatura, sobressaía no mínimo trato, tanto pela segurança e serenidade que mostrava no falar e em todas as atitudes, como pela indumentária sempre escolhida ao nível dos melhores dias de festa.
Nasceu e viveu naquela casa onde agora mora o meu tio Jofre, da qual saiu por moto próprio, alegadamente pelo desejo de maior sossego que os seus oitenta e poucos anos justificavam e também pelo facto de não querer sobrecarregar ninguém perante a possibilidade de necessitar de acompanhamento ou uma assistência sanitária mais personalizada.
Por isso contratou o serviço de um quarto num lar da capital, a seu ver muito recomendável, coma direcção do qual negociou a autorização de entrar e sair quando quer, bem como o privilégio de poder passar temporadas em outros locais, sem com isso cair na situação de, eventualmente, poder perder o seu lugar cativo.
É claro que vulgarmente é o avô que nos visita mas, por vezes, passam-se semanas e semanas em que ele se deixa ficar e, nessas ocasiões, são os parentes que, se o querem ver, se deslocam à sua presença.
Só por uma única vez fiz essa peregrinação, numa tarde de sábado primaveril.
Lá estava o avô João, o único homem saudável do convento - o outro que lá vive está permanentemente deitado devido a uma série de enfermidades - lá estava ele, dizia, para meu grande espanto todo sorrisos e mui sociável, no meio de um magote de senhoras com olhinhos brilhando de alegria.

Alvalade do Sado
6 de Fevereiro de 1996

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