segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

CASAR EM ALHOS VEDROS

Estava tudo combinado. Ao cair da noite, o táxi do Manuel Ropiu parava à porta do número 44 da rua do Polígono. Ele esperava-a. Logo que saísse de casa, o táxi rolaria para o desconhecido.
Ele esperava dentro do veículo. Tinha de ser rápido! “Depressa! Para a estação de Bombel”. O nervosismo de uma fuga contrabalançava com um esperança indefinida. Misto de sentimentos contraditórios, medo e esperança, insegurança e vontade… tudo ao mesmo tempo, confuso, mas promissor. Juntos, apoiados na esperança, abriam um novo trilho: um caminho a dois e um misto de abandonos inconfessáveis. Para trás, ficavam as resistências a um namoro proibido, enjeitado pelos pais, mas assumido pelos próprios como opção legítima de vida. Cada vez mais longe, ao ritmo do táxi, ficava um Alentejo preconceituoso e impeditivo.
Não há tempo a perder…o comboio não espera. " Mas… e o sapato?” Perdeu, caiu. A agitação do momento não deu tempo… esgueirou-se num último esforço de o alcançar. Gesto imprudente! O que estava combinado no maior dos secretismos, foi descoberto. A Vitália viu, viu tudo: “a filha da Zalinda fugiu de casa”.
Deixa”, disse ele, “compramos novos”. Estas palavras compensaram o deslize e dava novo ânimo à viagem. Ele trataria da compra. Que importância teria um sapato, se o compararmos com o raio da terra? A imensidão do momento não se compadecia com pormenores insignificantes. Para trás ficava a ficção realista de sapato perdido, a descoberta de Vitália, as angústias, os impedimentos e um Alentejo dominado por preconceitos, enfim, memórias de uma vida difícil de rejeições e obstáculos.
Já no Comboio para confortar e para ganho de coragem, ele acrescentava: “Casamos em Alhos Vedros…começamos tudo de novo. Os teus pais assim escolheram. E sabes… não somos os primeiros a fugir. Muita gente vai para lá, há mais trabalho … na CUF, na CP. Aqui nada conseguiríamos, aqui trabalha-se toda a vida na cortiça”.
A avaliar pelo silêncio, ela parecia concordar, comprometendo-se na obsessão de ocultar um pé nu, que só por si denunciava a fuga.
Que viagem memorável! A angústia de uma fuga proibida, compensada pela esperança de uma vida a dois. Alhos Vedros, Barreiro, a proximidade com Lisboa, tudo prometia neste mundo admiravelmente novo. Novo, mas assustador, assim como assusta tudo o que é novo e desconhecido. Mas a escolha estava feita e os pais dela não compreenderiam. Que aflição, essa sensação terrifica de fugir para a liberdade. Descalça, escondia a confusão do momento. Sem sapatos até parece que não somos gente.
Apearam-se em Alhos Vedros, já de manhã. O dia nascia ao ritmo de uma nova vida. Mas estava tudo planeado. Já tinham casa e sustento. De gravata deslocada e gabar dine dobrada no braço esquerdo, limpava o suor incontido de uma longa caminhada.
Minutos depois estava de volta à Estação prometida, trazendo consigo uma caixa branca por abrir. “Toma, calça-te. A partir de agora, nada temos a temer”.



Escrito em Nov. 1989
Ass: Dialógico Ponto Com

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