quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

O CARLOS MARX E O SILVESTRE STALLONE


O Carlos era amigo de toda a gente. Por detrás daquele ar desorientado que muitas vezes o punha a falar alto pelas ruas e a dar más respostas, havia um sorriso complacente a revelar que nada daquilo tinha grande importância. Manifestava o direito a que o deixassem zangar-se consigo e com a vida. E toda a gente lhe concedia esse direito. Um prenúncio de mudança de tempo, comentavam.

Era um dos nossos conterrâneos de maior omnipresença. Nas suas inúmeras deambulações ao longo do dia, muitas delas à volta do centro da aldeia, volta e meia lá aparecia ele, e sempre um gesto de amizade o aguardava.

Teve azar na vida, o Carlos. Uns diziam que os seus devaneios mentais se deviam à Guerra do Ultramar, outros que foi um problema derivado de uma otite aguda. Nunca cheguei a saber. Mais de uma vez, o ouvi dizer que o tinham internado muito tempo e lhe tinham estragado a vida, e a nossa mente corre à procura de referências e passa até por grandes filmes como foi o “Voando sobre um ninho de cucos”, de Milos Forman, que é sempre bom de recordar…

Houve um período em que o seu ar simpático, de barbas grandes, óculos por detrás das barbas, fazia lembrar um daqueles cinco personagens que apareciam em cartazes nalgumas sedes políticas, no pós Revolução de Abril de 1974. Cabeças coladas umas às outras, barbas e bigodes longos, perspectiva apontada ao infinito.Eu era novinho, mas recordo-me. Enfim, barbas e bigodes que naquele tempo fizeram moda. Outros tempos.

O Silvestre, como sabemos, também tem os seus devaneios. Na sua adolescência parecia ser um miúdo igual a tantos outros. A fase delicada de assumpção da idade adulta, infelizmente, aparentemente, não lhe correu da melhor maneira. Mas, enfim, salve-se o ditado, “de mouco e de louco, todos temos um pouco”. Porque, apesar de tudo, são vidas que se cumprem. Heranças genéticas ancestrais que percorreram tempos e tempos, anos e anos, para cá chegar, como qualquer um de nós. Nomes que sucederam a nomes, vidas atrás de vidas…

Um dia o Carlos cruzou-se com o Silvestre ali na esquina do Américo Pinto, mesmo defronte ao Coreto, nesta terra de homens velhos com asas. Parou, olhou para o outro e disparou-lhe com aquela voz potente que se lhe reconhecia:
- "Ouve lá pá, sabes quem é que eu sou?”
- "Sei, pá", respondeu o outro com voz igualmente altiva, "és o Vasco da Gama”.
- "É, pá, como é que adivinhaste?”.

Carlos Alves

1 comentário:

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Extraordinário relato de duas personagens que fazem parte do nosso imaginário. Quem não se lembra do Carlos e do Silvestre?

E que relato tão bem escrito que conseguiu transmitir esse carisma e essas formas de estar tão interessantes.
Afinal não só dos reis se faz a Estória dos povos.

Ass: Luís Mourinha
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