sábado, 6 de janeiro de 2007

QUINTA DE S. PEDRO



Vamos pai! Vá… quero ver o barco dos piratas.”
Recordo-me de uma conversa longa e atribulada sobre olhos, navios, e batalhas. Insisti. Queria ver de perto o navio dos piratas.
Pai, onde está o barco?”. Puxava-lhe pelo braço, lançando-me para a janela já embaciada pelo vapor da minha ansiedade. As dedadas marcavam a direcção misteriosa. Pacientemente pedia-me para esperar: “só mais à frente, nas salinas, antes da GEFA… calma, espera mais um pouco”. Mas não, impossível esperar, já não suportava mais; o desejo era superior a qualquer impedimento.
Indolente, a Camioneta do Cândido Belo rodava ofegante as portadas castanhas do Forno da Cal. Espalhava à volta o verde-claro brilhante da sua presença, abandonando gente e mais gente nas várias paragens, raras mas definitivas. Era hora de trabalho nas fábricas incontáveis da vila de Alhos Vedros. Ao longe, as barcaças do Tejo, ao lado da Corticeira, carregavam-se a cortiça de mais uma jornada. De sacas à cabeça, homens iam e vinham, buscando os fardos pesados, que largavam nas fragatas com destino a Lisboa. “Têm calos como os burros… aqui” – exagerava o pai. “No pescoço ai?” – perguntei-lhe.
No autocarro tudo normal, não fosse a passividade, a esperança e a vontade de chegar ao destino. Concentrados no final da viagem, os viajantes fixavam o olhar em frente, num silêncio compreensível, misturado com o ranger esforçado do motor já decrépito. De olhos fixos na janela, dei um salto acompanhado de um grito de alegria incontida: “olha é ali” e apontei o dedo indicador, erecto, apontava na direcção do objecto desejado. Tinha de sair dali; era preciso ver mesmo lá de perto o barco pirata.
Nesse dia compreendi que um autocarro é um meio e nunca um fim. É um instrumento para chegar e nunca uma espécie de sala de estar. Queria descer, queria chegar. “E tem piratas, não tem pai?” Subi no encosto do banco. Esgueirei-me para tocar à campainha, mas não consegui.
Não” - explicou o pai – “ os piratas não existem, percebes(?)… morreram todos”. Não ouvi com a atenção devida, mas ele continuou: “Isso dos piratas são histórias que se contam… e já não existem.” Negativo. Ouvi mas não gostei da explicação. Ignorei O pai tem sempre razão, mas desta vez – pensei. Ainda lhe respondi: “existem pois”. Importante naquele momento era o barco com piratas. Tudo o resto era supérfluo e vazio.
Bom baleando a máquina a tiracolo, o revisor percebeu a impaciência. Fixou o joelho no banco da frente em malabarismos de equilíbrio. Olhou-me e disparou um psst psst consolador. Pensei: nunca hei-de ser revisor. Andar e bombalear num corredor incerto e infindável, não isso não. Libertou nota a nota de vinte escudos, os dedos ocupados e guardou-as metodicamente na pequena mala de couro. Liberto esticou-me a mão oferecendo um “passou bem?”.
- “Tá ali, tas a ver? É aquele!”
- “Não é filho, aquele não é o navio dos piratas. É uma fragata. É um barco grande que leva cortiça para Lisboa.
O pai continuou, mas ficou uma imagem pouco clara da explicação. Não assimilei na totalidade a lógica do seu discurso. Aliás, acho que nem fez muito sentido; um barco dos altos mares a transportar cortiça. Ele que tudo sabia, como poderia estar enganado? Ficaram muitas dúvidas. Recordo ainda uma série infindável de perguntas, que lancei ofegante: “e o homem que lá está não pode ser um pirata? Porquê? E os homens que andam lá dentro não são aqueles assim… sem um olho?
Para mudar o rumo à conversa, o pai perguntou: “diz-me … a ver se sabes: como se chama um homem sem um olho?”
A máquina a tiracolo apoderava-se da conversa, e soletrava: “za…za-ro-lho
É um pirata” – disparei com toda a segurança.
Uma gargalhada efusiva e geral espalhou-se à minha volta. Neste momento já todos os viajantes participavam da minha humilhação. Estiquei a língua em sinal de desaprovação.
Olhei a senhora em frente, redobrada para trás em delírio boquiaberto. Desviei o olhar e repeti confiante: “é pirata, é mesmo, pronto”.


Quis sair sozinho. Saltei do autocarro. Já era crescido, um "homem" capaz de abandonar autocarros de gente grande. Estalei energicamente a porta manual do gigante verde.
Perto do Forno da Cal, o pai explicou: “vamos morar naquele bairro… ali”. Emocionado, estremeci ainda preso à mão protectora. Tudo era novo e surpreendente.
Uma agitação imparável de Galeras aninhavam-se junto à Corticeira: entravam e saiam mulas enjoadas num esforço de carrego. “O que é isto?” – perguntei. Indiferente o pai continuava em direcção à Quinta de S. Pedro. Insisti: “Isto é o quê?” Explicou-me: “ é a Corticeira Ibérica, uma fábrica de Cortiça. Em Alhos Vedros há muitas.
Recordo-me ainda hoje de ter feito um interrogatório interminável, repleto de porquês, enquanto, puxado pela mão, me extasiava de tanta novidade. Tudo era novo e surpreendente; as paredes brancas de uma cal recente e o vai - vem dos fatos de macaco café- com- leite dos ardinas, emprestavam ao local um colorido fantástico. As mulas angustiadas e sofridas contrastavam com o brilho metálico dos camiões de lata, poucos em número, mas já demarcavam sinais de uma revolução industrial qualquer. De olhos vendados os animais trabalhadores transportavam preguiçosos os fardos quadrangulares, piscando os olhos ao ritmo das moscas oportunistas.

Comparável a esta azafama só mesmo as movimentadas viagens às Festas da Moita. Embarcávamos na Bela Rosa, onde o Xico Valério tinha concentrada toda a frota de carroças gigantes. Em bancos corridos cobertos de mantas coloridas, famílias inteiras assentavam a expectativa da folia prometida. Depois, à ordem do mestre, as Galeras enfileiradas rumavam para as alegrias profanas da Nossa senhora da Boa Viagem. Era divertido! Em agitação, cantava-se ao som do acordeão ou do fado desgarrado. Outros, porém, mendigavam um lugar mais à frente, na Rua das Fábricas, onde, por sorte e vontade conseguiram ainda um espaço generoso no chão de madeira. À frente, o condutor marcava o ritmo em trote de festa, dirigindo uma parelha enfeitada, anunciando já a proximidade das festas prometidas. E todos os anos se repetiam estes Setembros promissores, sempre diferentes, compensadores e deleitosos.

De mãos nos bolsos, olhei-me e senti o orgulho adulto de umas calças à boca de sino e de uma camisa aos quadrados, cuidadosamente preparadas pela minha mãe. Em baixo, o brilho de uns sapatos de verniz. Tudo era novo: casa nova, roupa nova… tudo novo e promissor. Puxado pelo braço, entrámos na Rua da Corça, vizinha da cortiça e sempre visitada pelo rio.
- “Daqui vai-se para Lisboa, não é?” – pergunta retórica, para mostrar que sabia.
- “Sim. Para Lisboa e para todo o lado… é o rio Tejo”.
Ao longe avistavam-se os montes brancos das salinas. A luminosidade da manhã, ainda tímida, dava um tom etéreo à Quinta de S. Pedro. O cheiro a humidade resultado de um misto a terra mole banhada pelo sol, submisso e reflectido nas águas lentas do Tejo, davam o cenário e enchiam os sentidos de uma experiência inesquecível.

Posted by Dialogico Ponto Com

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