quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

AS RAZÕES DO CORAÇÃO

AS RAZÕES DO CORAÇÃO
(A Racionalidade do Pathos)

Foi assim que ele me contou a Estória. Uma Estória vivida na primeira pessoa. Uma experiência de amor, que ultrapassa toda a racionalidade previsível. Afinal nem tudo está pré-determinado como é pressuposto da ciência. Há razões que estão para além da Razão.
Parte desta narrativa terá acontecido no Jardim do Coreto. Espaço aberto, em terra batida, circundado por árvores, onde crianças e idosos, enfim, onde toda a gente se passeava, nos momentos livres, ali mesmo em frente à S.F.R.U.A. Nesses tempos ainda era possível ouvir a Filarmónica, que dava vida e ânimo à Velhinha, que orgulhosamente dava largas à sua juventude. Assim, aquele era um espaço social privilegiado, ponto de encontro, uma espécie de Àgora portuguesa, por onde se cruzavam pessoas e actividades.

Teria sido uma experiência tão intensa, que o interlocutor sentiu necessidade de contar a alguém. Chamou-me e ali estivemos horas a conversar. Para dizer a verdade, pouco falei; não tive coragem de interromper descrição tão sentida e eloquente. Até hoje, ninguém me conseguiu transmitir de forma tão rigorosa e ao mesmo tempo emotiva o que é isso da paixão por alguém. Desse momento terá nascido um amor para sempre, daqueles que ficaram inscritos ad aeterno nas árvores do Jardim do Coreto, com coração e com o respectivo Cupido, tipo selo a legitimar uma relação entre duas pessoas inseparáveis.

Terá dito algo assim, que depois transformei em texto, um pouco acrescentado pela ficção e apoiado na minha memória. Por isso, o que o Carlos me disse, disse, e o que eu escrevo são as palavras do Carlos mais o que me parece que ele teria dito. É a equação natural, mas por vezes traidora, que acrescenta um ponto ao conto.
Sentados à sombra da árvore grande, bem perto da bica manual onde lavávamos as mãos e refrescávamos a cara nas tardes quentes de verão, o Carlos fez-me o relato mais emocionado de uma viagem ao seu mundo interior, algures entre o paraíso, passando pelo coração, sem o guia natural do pensamento lógico e ordenado.

Quando a vi pela primeira vez, os olhos saltaram-me das órbitas. Que sensação fabulosa! Por momentos vivi a fantasia incontrolável de um sonho real. O Coração bateu três vezes, irregular em aflição, antes de conseguir recuperar o fôlego de um batimento normal. A boca rebentou na imensidão de um sorriso, que, nervosamente, saltou em gargalhada desmedida. Sorri e ri, num volume suspeito e incompreensível para os que passavam.
Que vergonha! Ser feliz até pode ser ridículo e comprometedor aos olhos dos outros. Por momentos vi um paraíso qualquer onde estava sem nunca lá ter ido. Tudo o resto não compreendi muito bem: o batimento cardíaco irregular fez-me perder a noção da realidade. A um autismo agradável sucedeu-se a perda instantânea do sentido mais precioso; perdi a visão, perdi-me num oceano incompreensível de uma lucidez qualquer. Privado de experiência visual, abandonei a sensação de luz, aquela que os gregos antigos reclamavam de Apolo e que tanto prezavam. Mas que me perdoem os gregos e os outros também, mas a racionalidade tornou-os alienados. Só os hedonistas compreenderam de facto, que por vezes há visões que a racionalidade não consegue ver. Provavelmente o coração tem olhos e vê mais longe do que se poderia aceitar”
As sucessivas mutações que senti, num momento tão curto, associadas a um fantasma benigno que me visitou, ajudaram-me a perceber que isto é paixão. A paixão é um qualquer movimento irracional próximo da loucura, porque é carente de cegueira. O apaixonado não vê. O apaixonado perde a racionalidade e eu perdi… enlouqueci. Parece que quem está apaixonado fica louco; que o homem louco é o único capaz de amar e a felicidade é uma viagem ao mundo que está além da lógica; é a experiência incompreensível das trevas sem fio de luz. O homem doente de paixão não vê. Imagino que o verdadeiro amante seja autista.
Se fosse um teórico destas coisas da Paixão, escreveria um livro, no qual descreveria as várias categorias hierarquizadas da Paixão. Abaixo do autismo tomava lugar o míope, aquele que ama mas vê (pensa). Logo abaixo, em terceiro lugar, o dióptrico que vê, embora com grande dificuldade. Vê demais para amar. Não ama é racional. É desagradavelmente saudável, porque ainda não perdeu os olhos
.”

O Carlos continuou a descrição da sua experiência pessoal inesquecível. Muitas das suas palavras emocionadas perderam-se com o vento. Claro que depois de acalmar me disse coisas triviais, mas sentidas: “isto é amor… adoro aquela miúda.” Esta Estória resultou numa vida em comum. A mim ficou-me a experiência deste relato. Para o Carlos foi o inicio de uma vida em comum, assente numa paixão incomensurável.


Dialógico Ponto Com

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