domingo, 13 de maio de 2007
Intimidades
OS LIMITES DO UNIVERSO
É fácil de ver, eu fui um menino de família, ali criadinho entre os quintais e a praça vizinha da porta da residência, sempre sob o olhar de alguém e sem o mínimo de laivo de ousadia para andarilhar muito além do raio de uma corrida. Eu até cedo experimentei as deslocações geográficas; meus pais faziam época balnear em Sesimbra e possibilitavam-nos mais vadiagens em outras estações do ano, ao que devo acrescentar as idas para as termas, em Monte Real e mais tarde no Luso, com isso materializando a diversidade e grandeza do território. Logicamente após ter aprendido a ler e a escrever passei a ter oportunidade de contactar com a vastidão terrestre através de atlas e mapas e em outros livros e, desde então, ganhei definitivamente a consciência da pequenez relativa do meio em que cresci. Mas até à idade dos sete anos, quando entrei naquilo que então se chamava a escola primária, fora do quarteirão circunvizinho à casa onde vivia, apenas saía dali pela mão dos mais velhos. Pelo meu pé, o ir até meio de uma rua que do largo partia na direcção do que para mim era desconhecido, o ir até meio dessa rua, precisamente até ao ponto em que ela se esquinava para se vir ligar a outra, sua paralela, isso era uma aventura que eu vivia com o trepidar no coração de quem sente uma aflição pela barriga parte para tolher as pernas. E mal aí chegado voltava para trás; um portão de chapa ondulada, pintado de encarnado, que fazia a frente do entroncamento, era esse o marco do mundo meu conhecido e, não sei porquê, olhava a continuação da rua e o que se avistava do que se lhe seguia como uma espécie de terra de ninguém, imaginando-a selvagem e insegura.
São as transformações coisa curiosa de se observar ainda que se discuta em que pode consistir o progresso e se muitas delas efectivam ou não aquele. Não quero aqui entrar em discussões teóricas, mas apenas dizer que sempre gostei de olhar aquilo que se ia alterando à minha volta. E, tal como acontece à realidade envolvente, também as pessoas se modificam. Creio até que a primeira mudança acontece em nós, nos olhos que lançamos sobre o que nos rodeia e que vamos assimilando de maneira diversa à medida que vamos crescendo. No entanto, a cultura é, por natureza, dinâmica, e mesmo as paisagens que mais aparentam imutabilidade sofrem, de facto, os mais diversos acréscimos ou subtracções, bem como variadíssimas transmutações.
Eu cresci naquilo que podemos designar como uma pequena localidade, uma comunidade cujo núcleo urbano não chegava as duas mil pessoas que, praticamente, se conheciam todas entre si. Cheguei a disputar a bola em plena estrada que ligava a Vila às outras e actualmente existe um nó rodoviário que tirou o trânsito do centro, em cujo viaduto e semáforos se assiste a horas de ponta e a um tráfego intenso que se prolonga pela madrugada. Às vezes, quando estou sentado e ocioso numa esplanada que agora se estende no largo dos meus calções, em frente do coreto, ocorrem-me à memória os assobios das andorinhas, nos fins de tarde. Mas o que mais radicalmente se modificou, talvez tenha sido o facto de estar ali com a minha esposa ou qualquer outra amiga. No tempo em que era miúdo, as mulheres não frequentavam os cafés e muito menos se sentavam à mesa com os homens. A par desta, a remodelação da geografia perfaz o fim do mundo da minha infância, a ponto de hoje, ainda que muitas casas sejam as mesmas, eu tenha dificuldade no reconhecimento dos sítios.
E o engraçado é que eu moro num lugar que para mim estava nas paragens do fim do mundo. Na época em que entrei para a escola, à direita do edifício estilo Estado Novo começava a lezíria domada pelas quintas e as salinas e viveiros de peixe, na beira-rio. Agra sei-o, mas naquele primeiro dia em que fui levado pela mão do pai até aos degraus de entrada, naquelas primeiras semanas, eu olhava o caminho entre valados e lá voltava a atribuir-lhe o mistério de uma superfície inexplorada. Lembro-me até como me arrepiava só de pensar que por ali podiam andar homens maus com facas e paus.
Era a idade em que eu, de ver imagens das estrelas e do cosmos em algum livro e revista, imaginava a imensidão do Universo e perguntava-me se nos seus limites não haveria nenhum portão encarnado. Não, não, portão, fosse de que cor fosse, não poderia ser; o portão era feito pelas pessoas e nesses limites não havia ninguém. Mas pensava que a assinalar o fim de tudo deveria haver uma espécie de pórtico, cujas formas me intrigavam e que uns dias fantasiava de uma maneira e noutros dias de modo diferente. Nem eu sei quantas não terão sido as noites em que eu adormeci com aquelas reflexões.
E quem seria o construtor de tal pórtico?
Portel, 27 de Abril de 1998
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