sexta-feira, 4 de maio de 2007

Intimidades


O DESPERTADOR

Ainda que não seja uma lei universal, hoje em dia já são raros os pais que se intrometem nas escolhas amorosas dos filhos e é vulgar que estes se limitem a comunicar a decisão quanto ao laço, absurdo que é, para tantos jovens, a ideia de pedirem o consentimento parental para que se cambiem as delícias de um namoro. Nem sempre foi assim, mesmo nestas latitudes em que as novas atitudes ganharam fóruns de cidade; houve um tempo em que os mais novos escutavam ou, se quisermos, eram obrigados a escutar os mais velhos, quiçá se sinceramente anuindo e respeitando os seus pontos de vista, sendo certo e sabido os dramas e dramas a que as inúmeras desobediências tinham conduzido.
Eu não estou nem quero estar a fazer o julgamento das situações, a pretender que fosse melhor como era, por isso lamentando aquilo que se tenha perdido, ou, ao contrário, a tomar a defesa da realidade actual. Nem isso é importante para o que me traz aqui. Provavelmente, como em tantas coisas deste mundo, ambos os casos terão os seus aspectos positivos e negativos e se os catarmos bem catados –e sempre de cabeça fria e aberta- em qualquer deles encontraremos ensinamentos que nos poderão ser úteis para a definição das nossas próprias opções e consequentes expressões. Enfim, a isto se chama o senso comum. Pela minha parte, limito-me à constatação, dou por irrelevante a opinião e, aqui, pouco ou nada me interessam outras indagações.
Fácil é adivinhar, eram meus avós gentes de outra época. Diz minha mãe que a minha avó não era mulher de impor um noivado aos filhos e tão só razões que ela nunca conseguiu descortinar a levariam a propor e a apoiar a proibição de uma determinada preferência que, diga-se com justiça, de facto, jamais sucedeu. Mas é claro que não abdicava da sua colherada e tanto lhe acontecia mofar da cara e dos ares de uma hipotética candidatura, como não se coibia de opinar, aos mais diversos níveis, em tudo o que tivesse a ver com o futuro dos que lhe tinham mamado do peito. E a todos repetiu que se preocupassem em encontrar alguém que fosse trabalhador e poupado.
Imaginem, mulher que personificava a genica, pau para manter em espelho uma casa com uma ninhada de sete, a quem nunca faltou a inspecção para que tudo estivesse bem e ainda com tempo e espaço mental para orientar, ao pormenor, as canseiras da parcela gastronómica e dormitória de um restaurante pensão que o avô possuía e era único na Vila. A todos punha num virote que ela mais não dava que as ordens e depois tinha aquela arte feiticeira de aparecer sempre que a manchinha de pó ainda permanecia sobre um móvel qualquer. E com o marido partilhava as contas e as preocupações e, em consonância, se resguardava da cobiça alheia, fazendo eco de uma narrativa que em muito diminuía os cabedais que, em lugar secreto, iam guardando.
Perante alguém assim, era obra querer contrariar-lhe os intentos ou a maneira como ela lia os sinais do quotidiano.
Lá diz o povo que santos da casa não fazem milagres, não é? Na História há o equivalente e nas histórias das famílias também. É que os anais registam os nomes e façanhas dos comandantes, mas quase sempre calam a memória do imediato e isto para nem chegar a falar do soldado raso. Pois bem, a minha avó tinha o seu braço direito em quem, a partir de uma certa idade, delegava as responsabilidades, se não as mais importantes, pelo menos as mais árduas e entediantes. Era a minha tia Carolina, a quem a vida se encarregou de atirar para o papel de filha que permanece para companhia e amparo dos pais.
Eu não sei explicar o que possa ter originado semelhante fado, até por causa da beleza dessa minha tia que, segundo os olhos de minha mãe, a muitos trouxera pelo beicinho e a todos cerceara sequer as vias para a mais leve das aproximações. Aconteceu, é o que me basta. Mas estou em crer que em muito terá contribuído a tal omnipotência materna de que falei. É que a minha tia Carolina era tímida tanto que, já anosa, ainda lhe testemunhei o recato dos sorrisinhos atrás da palma da mão direita. De toda a prole, era ela quem mais guardava o silêncio em face das oratórias superiores e era ela a primeira a corar com as brincadeiras e ditos dos irmãos, bem como dela partiam os avisos que constituíam a presença da autoridade.
Cronos tratou do resto. Qual a rosa que não murcha e perde o brilho, mesmo que mantenha o perfume por muito e muito tempo? A minha tia não fugiu à lei e com isso deixou escapar a condição casadoira, dela se dizendo o desperdício que era um partido tão rico e encantador.
Quando a minha avó faleceu tinha ela pouco mais de cinquenta anos de idade e um pai e um restaurante para cuidar –a pensão encerrara há uma boa mão cheia de translações.
Talvez tenha sido isso que a levou a achar que tinha chegado a hora de contrair matrimónio e se decidiu melhor o fez, sem dar atenção a quem quer que fosse.
O eleito foi aquele que veio a ser o meu tio Tomás, um operário electricista que, de uma fábrica da CUF, passou a trabalhar em empreitadas por conta própria para a construção civil de que derivaram as actividades e as empresas com que se afirmou no ramo.
Ele teve a particularidade de apenas uma vez na vida ter chegado atrasado ao trabalho. Foi depois de uma noite em que, não interessa porquê, eles tiveram que dormir em casa dos meus pais. Simplesmente aconteceu que o despertador que tinham trazido, por motivos óbvios, naquela manhã não tocou.
“-Não tem importância, podia ser pior.” –Começou ele com o seu compasso de eterna calmaria, enquanto se preparava para buscar o dever. “-O despertador estranhou a mesa-de-cabeceira.”

Portel, 24 de Abril de 1998

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