terça-feira, 15 de abril de 2008

Um Choro que Lava





UM CHORO QUE LAVA

Acabaram-se as antigas artes e ofícios da minha “terra velha” (1) de séculos. Com o seu fim, alteraram-se os ritmos, metamorfoseou-se a secular vila numa outra coisa, mais pele – apenas aflorando o sangue – menos alma. A maior parte das pessoas já se nem conhecem.

Ainda me lembro do pessoal do mar (aqui apenas rio), fragateiros, pessoal da faina. Os salineiros e corticeiros, um cais feito porto e o movimento ininterrupto das galeras carreando cortiça para as fragatas, botes e varinos que do rio faziam estrada para a Europa via Lisboa. Lembro-me do frenesim azulado das batas das operárias têxteis que, sob o signo das buzinas, ora acalmavam ora fervilhavam pelas ruas, numa azáfama de não sei quê mas para que haveria razões.

Lembro-me de um pulsar e de uma eterna combustão.

Fecharam as fábricas.

Da velha faina do rio ficaram-me recordações e o gosto pelos caminhos que a ele levam. Os caminhos que levam à minha praia de gaiato – gaiato que não menino pois que meninos eram os outros – estão sujos e violados, transformados em lixeiras.
Muralhas destruídas, lodos infectados por alguidares de plástico e jerricans naftados, caminhos interrompidos por carradas de entulho, máquinas de lavar, frigoríficos e outras preciosidades afins.

Regresso assim àquele lugar cá dentro, bem cá dentro (ou será fora?), em que tudo é escuro e onde se não regista qualquer actividade mental numa ausência total de pensamento ou raciocínio.

Aquieta-se então a alma - e tudo - nessa ausência de si, ecrã vazio da consciência.
Não há emanações, não há sentir(es).
Que se pode amar aí?
Nada.
Um (O) nada que é uniforme de (in)vontade.
Uma espécie de vácuo ou vazio onde, contudo, algo se liberta da escória que carrega. Será o mim ?
Será quem ou o quê ?

E, contudo, não há esquecimento quando se regressa ao estado do ser. Retorna-se no grito das aves do mar – o que de puro sobressai da imundície -, a mão que se oferece para o regresso.
Lentamente, num ápice, se recupera o esqueleto do que mais consistentemente se é, alicerce de músculos e razão. Torna, assim, a pulsar o que impele o ser. Pulsa, o coração, pulsa.

E o que ficou na travessia, retido no purgatório do existir, impele no sentido de venturas visionadas no clarão que alumia o peregrinar, e continua a demanda de outros cheiros, outros olhares, outras maneiras de estar.

Ainda os flamingos se não foram e já chegaram as andorinhas.


(1)– Alusão a um poema do amigo Luis Carlos com este título.

. Do livro “Peregrinando” de M. J. Croca (no prelo), a publicar brevemente



3 comentários:

Estudo Geral disse...

Ainda bem que lava... está lava de vulcão. Gostei muito de ler. Manda mais.

A.Tapadinhas disse...

É interessante a nostalgia, com a crítica implícita às gentes de Alhos Vedros, dos tempos em que havia "menos pele e mais alma". Esta sensação vinda de alguém que vive numa terra que, vista do exterior, conserva algumas das qualidades que, dizes, vai perdendo, paulatinamente. Será que somos, tendencialmente, demasiado exigentes ou distraídos, com o que nos cerca? Sobre distracção, as palavras que escreves dão a resposta. Fica a exigência...
Abraço.
António

MJC disse...

Em primeiro lugar obrigado pelos comentários.
Os territórios da infância tornam-nos sempre nostálgicos mas …, parece-me que será consensual reconhecer que o fecho de fábricas e o consequente fim de alguns ofícios cá na terra lhe diminuíram a actividade humana. Actividade humana que, inevitavelmente, é sempre portadora/geradora de paixões. Por outro lado, o problema da socialização (ou da falta dela) parece ser um problema mais ou menos generalizado nas sociedades modernas, facto que vem motivando estudos e reflexões por parte dos especialistas na matéria. O facto de haver grupos que interagem, convivem e constroem projectos em conjunto enriquecendo assim o seu viver não altera o pano de fundo, parece-me. É esse contexto que acaba por gerar alguma indiferença/desmotivação que permitem, entre outras coisas, agressões ambientais e o abandono de zonas que, pela riqueza que constituem a nível dos ecossistemas, deveriam merecer mais e melhor atenção da parte de todos e, principalmente, de quem tem a responsabilidade da sua gestão (creio que no caso é a Adm. do Porto de Lx.).
Abraços
m.j.