quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Intimidades

GUARDA-RIOS

A grande mancha de água que vai e vem com a respiração do oceano, ora deixando um lamaçal serpenteado esporadicamente por linhas de água, ora luzindo pela acção do Sol ou reflectindo palpitares nebulosos em trânsito pela profundidade do azul atmosférico, líquido salgado que deforma a quase albufeira ao atirar-se pela planície a dentro, em meandros formados pelo encontro da geometria de arranjos aquíferos e a fronteira natural saída da deposição dos elementos e da colonização vegetal, na pessoa das salgadeiras e variadíssimos pequenos exemplares das floras dos estuários mediterrânicos.
Em frente o céu descai por detrás de um alinhamento de copas sarapintadas pelas silhuetas tridimensionais de hangares plúmbeos, pequenos brinquedos pela força da distância, separadas das esbranquiçadas ondulações por um contínuo de verde.
À direita, do lado onde a aurora se manifesta, na enfiada de um casario multi-color que ladeia a comunhão da terra com o rio sobre uma espécie de abcesso de uma erodida ravina de argila, os esverdeados dos tufos arbóreos e dos campos de pasto e de cultivo, interrompem-se, aqui e ali, pelo efeito de um moinho de maré ou de casas quintas, pluriformes e de cores diferentes.
Consoante vamos rodando, para lá do sapal, no fundo de miniatura, a mescla de casas térreas e prédios, geralmente baixos, um canteiro de torres além, outro acolá e, no fim do avistamento, serrania velha, toda ela verde que, no poente, é abruptamente suspensa pela perpendicular da mancha urbana da periferia e da grande capital, em que um braço industrializado se afoita em istmo pela superfície líquida.
O silêncio feito do arfar de bóreas, materializado, nas ervas e nas ramagens dos arbustos. Uma vez por outra, voos e berrarias de gaivotas, amiúde, piares vários, sobretudo de asas marinhas e, como ruído de fundo, quando a praia mar está distante, permanente e imparável, o fervilhar dos poros do lodaçal.
Aquando da Primavera, é ver o chão explodir em arroxeados minúsculos ou amarelos e brancos que salpicam os acastanhados e o negrume onde impera o verdume rasteiro e perdemo-nos das coisas civilizadas que, daí a pouco, novamente se nos imporão para o sufoco do circo quotidiano.
Mas, por instantes, não custa nada desligarmo-nos daquilo que nos atrofia. No cheiro que do solo brota e paira no ar, renovamos a carne e o espírito para aquilo que tem de vir.
E se, por acaso, nos deixamos ficar até que a abóbada se alaranje, dias há, em cada mês, que podemos ter a sorte de ver o disco lunar amarelando uma esteira imaterial na calmaria de uma das serpentinas espelhadas do estuário.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS

Um desafio aos nossos leitores e colaboradores.
Mandem Estórias sobre Alhos Vedros.

As Vossas Estórias, as Vossas recordações, as Vossas experiências.
Ficamos à espera!

domingo, 25 de fevereiro de 2007

COOPERATIVA DE ANIMAÇÃO CULTURAL DE ALHOS VEDROS

Uma tarde, algures em 1986, no Café dos Valérios bebeu-se o Moscatel da "iniciação". Teria nascido a CACAV, hoje reconhecida por todos como um espaço (na latura, sem espaço definido), onde fervilhavam ideias e promessas de intervenção cultural. Não eram muitos a erguer o copo de Moscatel. Nem me lembro com exactidão quantos eramos naquela "reunião" promissora, que trazia esperanças e renovadas motivações. Mas de certo lá estava o Fosch, estudante de Antropologia, com uma visão "estrangeirada" das coisas e do mundo (por estudar em Lisboa, em contacto com o novo mundo), o Armindo na sua postura peculiar e crítica (com uma visão política e filosófica das coisas, muito para além do Senso Comum) e o Raminhos já professor, cursado em Sociologia, com ideias inovadoras mais consistentes sobre o que poderia ser a vila de Alhos Vedros, com mais dinâmica do ponto de vista cultural.Estavam mais pessoas, que a minha memória não alcança, com todo o rigor. Há uma imagem difusa, que me faz recordar do Carlos (com o seu penteado alinhado pelo Setúbal), do Luís Carlos Santos (cabelo comprido e desafiador, também antropologo iniciante), o Henrique Contente (jovem empresário na cidade grande - Barriero) e de outros que também se enebriaram com a bebida iniciática e que mais tarde deram vida a experiências fantásticas que ficaram inscritas na História de Alhos Vedros. E outros e muitos outros que continuaram a "obra", depois de algumas saídas e auto-exclusões, entre eles o Carlos, o Croca, o Vitor Santos o Carlos Vardasca e tantos outros.
A CACAV teria as suas sementes numa crescente necessidade de contra-posição a uma certo "marasmo" e uma certa vivência que apenas oferecia a "esquina" o alcool e a droga, fenomeno emergente nos anos oitenta.

Depois vieram as actividades e que foram tantas, que já nem consigo recordar. A Rádio Opção, que foi adoptada de um Projecto do Luís Paulo Rosa (o Estúdio 54), as famosas Noites de Lua Cheia, os contactos com o grande Agostinho da Silva, os Atliers de Arte, as Escola de Música, as Viagens temáticas sobre o Ambiente, a Escola Aberta, as Homenagens a José Afonso, enfim, um enorme curriculum, que conferem à CACAV o estatuto de uma "jovem madura", com muito para contar.
Muitos foram os episódios e as experiências partilhadas. Muita gente por lá passou e se juntou a este projecto. Lembro de uma estória de Siglas e de Acrónimos, quando se pretendia baptizar a Cooperativa.

A propósito de Siglas e afins e na altura quando a CACAV se estava a iniciar cheguei a propor a sigla/ acrónimo CACA. Achava eu, no alto iluminado dos meus 20 e poucos anos que era uma sigla com mais impacto. Valeram-me a experiência e o bom senso de pessoas mais maduras como o Raminhos (o Grande Raminhos), que me conseguiram demover.
Fiz esta proposta porque achava que nos iriam ouvir, isto num tal Alhos Vedros (dos anos 80) em que nada acontecia. Era o que dizia o Luís Fosh, quando pronunciava uma das suas palavras preferidas: "temos que sair do Marasmo".
"Marasmo" para dizer que nada acontecia e que o mundo em geral e o velho burgo em particular estava à beira da alienação.
Hoje reconheço que marasmo e alienação é o que vivemos hoje se deixarmos de olhar com atenção o que está à nossa volta. Quanto à CACAV faço-lhe a devida continência pelo trabalho desenvolvido até hoje e reconheço que, de modo nenhum, lhe assentaria o acrónimo de CACA, mesmo que isso pudesse ter o impacto que até poderia ter (quem sabe!?).

Um abraço à própria (CACAV) e o reconhecimento pelos serviços culturais que prestou e presta ao Concelho da Moita.

Já agora: quantas Estórias teriamos que contar sobre esta nobre “Instituição” a que toda a gente reconhece com CACAV? Falta escrever sobre a CACAV! Quem será capaz de lançar a primeira letra? Neste caso a segunda letra, com conteúdos capazes de fazer jus ao mérito desta "Casa" fantástica e a todos os que ao longo deste tempo nunca (repito: nunca) abandonaram o "barco" e que, mesmo à bolina, navegaram bem longe, para além dos preconceitos e da inactividade castradora. E agora neste momento apetecia-me falar do Raminhos e de tantos (poucos!) outros que sempre estiveram à frente deste grande fenomeno cultural, a que por mérito e reconhecimento público, se decidiu chamar: Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros.

P.S. Que me desculpem, se a minha memória me fez esquecer alguém ou alguma actividade das muitas, que foram desenvolvidas pela CACAV. Penso que outras pessoas, com mais presença e conhecimento do processo de crescimento desta enorme "Instituição", se deveriam sentar ao Computador e deixar o registo do que foram estes vinte anos de notável existência.

Luís Mourinha

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS

Este Bolg é um espaço literário.
Espaço (e tempo) dedicado às "Estórias de Gaveta", que por via digital poderão ascender à categoria (digo, dignidade) de estórias reais, contadas na primeira pessoa.Mande-nos a sua estória, indique um pseudónimo (nome de autor) e nós publicamos.
Aceitamos as Vossas Estórias, que podem ser enviadas para:
- velhos.alhos@gmail.com
Autores/ Coordenadores:
- Luís Santos
- Luís Mourinha
- Luís Gomes

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Num dia de insolvência insolente, dissoluta e solvente em planos de ânimos saturados de cargas semânticas falsas, incolores, híbridas.

Como tu.

Cheio de abstractas linhas geométricas e belas curvas de ângulos rectos, no meu triângulo de quatro faces falta uma face. A face que me ofereces, triste e opulenta de sombras que iluminam o teu olhar e mortificam o meu sorriso. Só as lágrimas consegues gerar nos outros, não são lágrimas salgadas das águas profundas da alma insípida e superficial, nem o sangue quente de uma juventude perdida no frio árctico de um Agosto próximo num Alentejo distante.

Quem sofre mais? O enamorado não correspondido, ou o não enamorado que não pode aceitar uma paixão que não lhe pertence, e por isso mesmo sofre, enquanto a indesejada paixão o sufoca? Paixão extrapolada em lágrimas, eximias mestras da esgrima do pensamento e sentimento… reencontro atrasado de um passado não vivido e de um presente já passado…

Lágrimas, apenas lágrimas, e nada mais que isso.

Lágrimas ocas contra um interior tão rico como o teu. Tu és o humano mais humano que conheço, e no entanto tentas esconder a tua humanidade por debaixo de uma máscara gélida… imponente distância inútil, ingénua… gostavas de ser ignorado, mas isso é impossível, ignorar o impossível e dissolver-se no possível seria o maior crime desta impensável humanidade. A fusão com o possível, é a morte da essência, a eloquência de uns na má vivência de outros…
Vazio, frio… Distante e gritante na troça estreante da bondosa maldade inocente…
Tu que tens a beleza da sabedoria e o dom da sensibilidade, não te afastes de nós, nem negues quem és. Desprezar é mentir, aceitar é curvar, sentir é viver!

E se eu dedicar este texto à minha amada, será que ela vai sentir o mesmo que eu escrevi, ou vai sentir o mesmo que eu desejei?


João P. Pereira

sábado, 17 de fevereiro de 2007

L' Infinit

As experiências multimédia continuam.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Intimidades


VOCAÇÕES

Entre os amigos do pai contava-se e, graças a Deus, ainda se conta a figura do Dr. Neves da Costa, médico da Vila e da família e que a partir da minha puberdade também a mim passou a medicar os paliativos para as minhas constipações e gripes mais acicatadas. Era pessoa chegada que, em muitas ocasiões, parlamentou com o meu progenitor, portas a dentro, se bem que maioritariamente a propósito de assuntos da vida do hospital da Santa Casa de que o primeiro era o Director Clínico e o segundo o Provedor e aí, quasi sempre a sós, no escritório, não poucas vezes por mera acção da cortesia e então no seio do serão parental que se fazia na sala. No café, para aqueles ócios de conversa de homens após o jantar, eram companheiros de mesa e nas inúmeras situações em que o chefe da casa se queria acompanhado pelo herdeiro, terão sido tantas as vezes em que foi ele a conceder a permissão, inevitavelmente com o regulamentar soerguer das ancas e do tronco.
O Dr. Neves gostava de mim e divertia-se com as perguntas que me fazia sobre história de Portugal, pelas quais me escutava os nomes certos de reis e rainhas, batalhas e outros eventos especialmente importantes. Pela minha parte correspondia-lhe o sentimento e se o esfregar de cabelos com que habitualmente me recebia não seria muito do meu agrado, já me deliciava o facto de ele me tratar como um homem qualquer e até de indagar a minha opinião em algumas matérias. Era o melhor prémio para os treinos daquela vida de adulto. Durante os mais tenros anos, após a minha entrada no mundo escolar, foi sua imagem de proa a pergunta que, para ele, provavelmente era a forma de me dar as boas vindas:
“-Então rapaz, diz-me lá o que queres ser quando fores grande?”
Porque a fazia não sei e, naturalmente, também nunca o explicou. Tão só recordo que a minha resposta, com a minha voz volumosa e arrastada, era inevitavelmente a mesma:
“-Quero ser cientista.”
A afirmação era sincera e sentida. Na realidade, e desde já pedindo perdão por eventuais gabarolices, fui gaiato curioso e sempre me interessei pelas explicações de variados fenómenos da natureza física ou animal. Pedia para me comprarem livros e revistas que lia em jeito de náufrago buscando uma tábua e quando algo me escapava, não me cansava de maçar os adultos com a demando do clarear das ideias.
Humildemente peço que não façam juízos excessivos daquilo que lhes estou a narrar.
A definição da minha opção era clara, mas as motivações amalgamavam-se entre o sonho com aventuras arqueológicas e o desejo de descobrir curas para doenças letais. Na verdade, vistas agora as coisas à distância a que estão, parece-me que me via num misto de cabelos empinados entre tubos de ensaio e a lupa acocorada sobre o movimento de um insecto ou a imutabilidade de um qualquer calhau. Não nos esqueçamos que estamos a falar de projecções de miúdo. Tal era a minha vocação ou, pelo menos, era essa que eu achava ser a minha inclinação. Também um dia quis ser piloto e, por uns tempos, encarei a possibilidade de, por exemplo, vir a ser futebolista. No entanto, foram aspirações passageiras e, que me lembre, a única que me acompanhou ao longo da vida e, em parte, motivou a posterior opção académica, essa foi a minha predilecção pelas explicações científicas, os seus métodos e técnicas, as suas formas simples mas elegantes, para tornar evidente aquilo que antes não era, deixando-nos amiúde a sensação de tão grande simplicidade que nos perguntamos se mesmo nós, uns leigos, também não teríamos visto o problema dessa maneira. Daí o gosto e o prazer com que hoje faço, com toda a modéstia, por mui simples que o seja, alguma ciência, sem com isso pensar em receber a mínima retribuição. Fique bem claro, nada há de altruísmo nisto. Por um lado, são consideráveis as razões literárias que estão por detrás da minha decisão e, cumulativamente, como já disse, está o gozo juvenil que sempre senti na solução de problemas.
Contudo, não foi esse o abraço da minha vida, não foi por aí que eu acabei por querer canalizar as minhas energias. Como o sabeis, esse caminho foi, afinal, o das letras.
Sou a primeira pessoa a espantar-me com uma alteração assim. Tanto mais se não omitir que a minha primeira redacção, na primeira prova que prestei no baptismo da escola primária, consistiu na frase liminar, eu gosto muito de arroz doce, pomposamente intitulada, o arroz doce. Logicamente já atentei no assunto, mas não foi o muito cogitar que me trouxe alguma luz para o mesmo. Para falar francamente, nem eu sei porque escrevo. Tudo quanto sei é que não consigo deixar de o fazer e isto tão só devido à contingência de no meu cérebro se formarem enredos e personagens, sem que seja essa a minha vontade e de me sentir mal se não passo tudo isso para o papel. Trata-se simplesmente de um Dom que Deus me deu, pelo qual me sentirei eternamente agradecido e jamais, em qualquer circunstância, envaidecido por isso. Tenho até uma teoria a esse respeito, a qual se baseia na explicação de um facto singular na minha existência. Tem a ver com o meu primeiro texto literário, uma poesia que, infelizmente, perdi, mas cujo início nunca esquecerei. Escrevi-a aos onze anos de idade, estava de férias nas termas do Luso e, de então para cá, não mais parei de alinhavar a minha prosa.
Porque aconteceu isso?
Ele houve uma certa influência de alguém, um rapaz chamado Joaquim José, à época estudante em Coimbra, que não mais encontrei, mas que, nessas semanas que passamos no mesmo hotel, muito me fez saber sobre a repressão política da altura e muitos outros e variados temas, em que é possível incluir coisas tão díspares como a ovnilogia. Era um jovem inteligente e culto, que me deixava desconcertado pelo à vontade com que participava nas conversas dos homens e muito mais pela capacidade que revelava em opinar de modo a que eles concordassem com as suas ideias.
Foi pois para esse indivíduo que, repito, não voltei a ver, que eu escrevi a minha primeira peçazinha e com ela, sem o saber, dei início a este mergulho nos jogos das palavras, do qual não mais regressei à superfície.

Alvalade do Sado
23 de Fevereiro de 1996

Alhos Vedros View

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

LIVRO EM BRANCO

Um desafio aos nossos leitores e colaboradores.
Mandem Estórias sobre Alhos Vedros.
As Vossas Estórias, as Vossas recordações, as Vossas experiências.
Ficamos à espera!

MANUEL BASCULHO


O Manuel Basculho é um dos sem abrigo de Alhos Vedros.É sabido que tem um quarteirão de milhares de euros no Banco, mas prefere antes viver na rua do que pagar guarida num desses lares para a 3ª idade.Hoje, vai-se arrastando de esquina em esquina, de banco em banco de jardim, por lugares semi-ocultos, não sejam demais os olhos que o olhem. Come quase nada. Dorme pelos buracos. Veste umas calças que eram de tom claro. E à sua volta vai-se moldando um ar nauseabundo, insuportável.Naturalmente, tem dificuldade em impor a sua presença e suportar o olhar dos outros, acabando por comprar alguma pouca comida de fugida e tem até, por isso, dificuldade em arranjar umas garrafitas de vinho. Diz que já não bebe por causa do fígado. Sonha com postas de bacalhau cozido com batatas. Se é que ainda sonha. Eu acho que sim.Tem 68 anos de idade, mas não recebe reforma alguma. Provavelmente, porque nunca teve capacidade para se deslocar até ao Barreiro, à Segurança Social, meter os papéis, nem teve ninguém que se dispusesse a fazer isso por ele, o que sem dúvida constitui uma missão muito difícil para qualquer humano com falta de asas, como eu.O Manel nasceu no Pinhal Castanho. Naquele tempo passavam-se carradas de fome, diz, pelas alturas em que o seu pai foi para a Guerra. Foi fazendo de tudo um pouco para sobreviver. Alguns contam que foi pedreiro. E, depois, o Manel é daquelas personagens sobre quem se contam sempre muitas estórias. Uma vez, dizem, ao construir uma casa de banho, esqueceu-se de fazer a porta e ficou fechado lá dentro. Outra vez, ao reconstruir o muro da fábrica do Cabrita, quase a concluir a obra, pediu a alguém que ficasse a segurar o muro, enquanto ele ia beber uns copitos de vinho, não fosse o muro cair.Nunca se lhe conheceu companheira, ou talvez até tenha sido tudo por um desgosto de amor. Sabe-se que enquanto a mãe viveu, vivia desintegradamente integrado. Agora já nem isso. Há quem diga que é deles o Reino dos Céus. Será?

Luís Santos

domingo, 11 de fevereiro de 2007

"Roteiro", a bola do Euro 2004

Sobre o Euro 2004 já todos os balanços foram feitos. Há, no entanto, uma pequenina coisa que para nós tem muita curiosidade, mas que quase passou despercebida. A “Roteiro”, nome atribuído à bola utilizada no Euro 2004, fabricada por uma famosa marca desportiva, obedecendo às mais avançadas tecnologias e às mais rigorosas exigências da UEFA, assim se designou, em homenagem a um célebre Português que se pensa tenha escrito o diário de bordo, da Viagem da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, capitaneada por Vasco da Gama, no ano de 1498. Referimo-nos ao escritor Álvaro Velho, natural do Barreiro, e cuja memória se guinda ao futuro, por exemplo, na Escola do Ensino Básico do Lavradio que se faz registada com o seu nome. "Roteiro" foi precisamente o nome que o escritor atribuiu à sua grandiosa obra.

Ora, como na altura o Barreiro era um lugar do velho Concelho de Alhos Vedros, do qual só saiu, se a memória não nos trai, no ano de 1521, em carta de foral atribuída pelo rei alcochetano D. Manuel I, isso significa que a “Roteiro”, assim se designou em homenagem a um famoso Alhosvedrense, mas por todos nós esquecido.

Então, aqui temos todos um bom motivo de regozijo, dada a curiosa relação entre a bola do Euro 2004 e a nossa região que convém destacar, até pelo inédito feito que constituiu tal acontecimento desportivo. Como sabemos, nunca a nossa selecção tinha conseguido uma classificação tão distinta numa prova organizada pela UEFA.

Apraz-nos, assim, acrescentar mais um precioso elemento à nobre história de Alhos Vedros que, é verdade, tem andado nestes últimos anos tão mal tratada.


Luis Carlos

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS

Este Bolg é um espaço literário.
Espaço (e tempo) dedicado às "Estórias de Gaveta", que por via digital poderão ascender à categoria (digo, dignidade) de estórias reais, contadas na primeira pessoa.Mande-nos a sua estória, indique um pseudónimo (nome de autor) e nós publicamos.
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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Intimidades

A MINHA PRIMEIRA NAMORADA

A Júlia foi a minha primeira namorada. Era filha da vizinha Natália e vivia num rés-do-chão de telha vã, no enfiamento de um dos lados da praça imperfeita onde a miudagem se arrogava de preceitos de propriedade e dava guarida a brincadeiras e a dois passos da qual se situava a porta da minha casa. Foi assim que nos vimos e nos mostrámos e isso passou-se desde que os meus calçõezinhos se apeteceram de rabear pelo piso arenítico do jardim Entre a meia dúzia de miúdas que por ali orbitavam com idade rondando a minha, foi por ela que o meu beicinho se deixou cair. São coisas do coração, não há em elas razões que tenham a ver com a nossa vontade.
Eis então a Júlia, o meu primeiro amor.
Tudo contado, desde o momento da primeira jura de eterna paixão, com os interregnos esperados entre quem cresce, ainda namorámos três anos. Aconteceu desde os dez anos de idade do último degrau da instrução primária até aos treze da minha entrada no Liceu. Ela é um ano mais velha.
Oh se crescemos juntos…
Enfrentámos muita saraivada e, sempre cúmplices, nunca perdemos a confiança mútua e uma solidariedade quase sem limites. Da incólume passagem pela agressão de um quarteto de mariolas, no Barreiro, quando a caminho para uma das primeiras idas à escola preparatória, às opas de silêncios sobre aquilo que os outros não deveriam saber, acrescentando ainda a partilha do estudo e dos saberes e até os incentivos para as responsabilidades escolares e outras, foram muitas e diversas as nossas experiências conjuntas e se fomos aprendendo com elas…
Posso registar com carinho, agora que praticamente um quarto de século passou sobre a hora de finados, tratou-se de um triénio prenhe de laços e alegria que teve o seu momento mais alto no Verão que se seguiu à dispensa dos exames de aprovação no ciclo preparatório, durante o qual, nos meses de Julho e Agosto, tive o prazer da sua companhia na casa balnear que os meus pais possuíam em Sesimbra. Quando em Setembro seguia a caminho do Luso, para as três semanas que a família aí costumava passar, a fim de o meu pai usar as termas, nesse ano eu sentia-me o miúdo mais feliz do mundo.
Obviamente a mãe dela tinha confiança em mim o que não era nada de espantar. Afinal, eu era filho de uma família decente e respeitada e sob os meus tectos tinha ela acesso a programas televisivos e discos ou pistas de automóveis e carros telecomandados, além dos livros, e de modo algum passaria pela cabeça de alguém ver algum mal nisso. No que me toca, também eu era da casa e tinha toda a liberdade de entrar enquanto os seus pais cumpriam as jornadas fabris de sustento.
Começou por ser uma relação pueril do ponto de vista do afecto nada mais que sucessivas e quase diárias reafirmações da aliança e, no plano da carne, apenas ultrapassando os esporádicos abraços mais apertados de um ou outro pé de dança, com o encostar das coxas nos bancos das camionetas da carreira e as mãos dadas por debaixo do balandrau que se fazia com as pastas e algum casaco ou blusão.
A ela dei o primeiro beijo nos lábios e igualmente o primeiro no rosto. E é claro que não nos ficámos por aí. Foi pois na sua pele eriçada que os meus dedos púberes se iniciaram a percorrer e desenhar mapas de carícias e, na ternura acanhada da vez primeira, se aventuraram a passar sob o elástico do soutien em busca de uns mamilos retesados sob o ritmo da arfagem. E as mãos baptismais que se tocaram e retocaram nos sexos um do outro, em uma ou outra ocasião nus. Demo-nos mesmo aos primeiros toques de libelinha na corola de uma flor melada e como nos sentíamos bem, cientes de estarmos plenos de céu.
Por fim a vida separou-nos. Ela entrou para a escola comercial e os estudos acabaram por nos remeter para caminhos separados, no decurso dos quais outros rostos surgiram e aos poucos ganharam predominância e tanto ela como eu nos entrgámos a outros corações.
Hoje nada resta, a não ser a memória e é só ela que me possibilita reviver o meu primeiro namoro e sobretudo identificar a minha primeira namorada que, um dia, me chamou à janela e me entregou um bilhetinho escrito à mão em papel de caderno.
“-Lê isso e depois devolve-me com a resposta” –Disse ela fechando-me a vidraça na cara, tão inesperadamente como me entregara a missiva.
Já não serei capaz de repor tudo o que lá estava escrito, mas sei que começava sem apelo nem agravo por um isoladíssimo amo-te. Só depois explicava a razão de ser daquele amor e manifestava a vontade de saber se eu estaria ou não interessado em me entender de namoro com ela.
Creiam ou não, após a leitura fiquei atónito. Senti uma arritmia repentina e uma crispação ao nível da barriga, à medida que o rosto aquecia de forma assustadora até ao ponto de incómodo. Jamais experimentara aquelas sensações e se me perguntassem, no momento, certamente seria incapaz de dizer o que se estaria a passar comigo.
No dia seguinte eu disse-lhe que também a amava.

Crato, 20 de Fevereiro de 1996

Sem Abrigo

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

O Movimento das Forças Interrogativas, é Fixe!

O Movimento das Forças Interrogativas (MFI), é Fixe. Ora aí está uma sigla interessante, se a compararmos com as que acompanharam a revolução democrática de Abril. Talvez um bom indicador de que hoje estamos a pensar melhor e com mais imaginação que há 30 anos. Por isso substitua-se o desespero e a tristeza, pela esperança e pela confiança. Mesmo tendo de se gramar com o Sócrates.

Equivalente ao MFI, na altura, só mesmo o MFA(P), Movimento das Forças Armadas em Parvas. Senão vejamos alguns exemplos:

- MRPP, Movimento Revolucionário do Partido do Proletariado. Só conheço uma pessoa que ainda hoje era capaz de pôr esta sigla num Movimento. Bem, talvez duas.

- PCP(R), Partido Comunista Português Reconstruído. Naturalmente que depois de todos os Partidos Comunistas, Russo, Chinês, Albanês, Portugal tinha que arranjar um melhor que os outros todos. E quantos rios de tinta foram gastos para o legitimar. Como seria engraçado ver outra vez alguns amigos meus a vender o Bandeira Vermelha. Claro que hoje seria mais natural tratar-se do jornal do Benfica.

- PCP(ML), Partido Comunista Português Marxista Leninista. Uma vez um conterrâneo amigo levou-me a um comício deste partido. Pretendia angariar novos simpatizantes. O homem do discurso era na altura o Eduíno Vilar. Foi daqui que veio o Francisco Louçã, se não estou em erro, ainda antes do PSR (Partido Socialista Revolucionário). Enfim, um acontecimento digno do “isto só vídeo”.

- Ou até da CACAV, sigla que nem precisa de comentários. Sem dúvida que Movimento das Forças Interrogativas está a léguas de distância em termos de bom gosto.

- Isto já para não falar na OCMLP, da FEC(ML), da UEDP, do COPCON, ou do POVO UNIDO QUE LAVAS NO RIO, da tal GAIVOTA que voava, voava (claro que agora é a Águia Vitória), do AVANTE camarada Avante, ou de uma ESTÀTUA DE FEL A ARDER... E é claro que, pelo meio, acabava sempre por aparecer o Tino Flores, que antecedia as discussões sobre os inconvenientes das refeições burguesas onde entrasse o marisco, ou as razões porque os gajos que iam aos bailes eram social-fascistas.

Hoje a coisa está mais refinada. O PCP já não é comunista, embora ainda se inspire nas ideias de Marx, mas evita dizê-lo em voz alta por causa dos “mal entendidos”. O PS, já há muito que tirou o Socialismo da gaveta e meteu-o no lixo, juntamente com o arreda Marx Satanás, e tornou-se um Partido Social Democrata. O Partido Social Democrata é acima de tudo neo-liberal (muito mais que democrata) e o Partido Popular de popular terá pouco ou nada, já que é o mais elitista de todos. E por aqui estamos conversados.

É também claro que daqui a uns aninhos vai haver um Referendo sobre o SIM ou Não à liberalização do Aborto, por proposta apresentada na Asssembleia da República pelo PP(R), Partido Popular Reconstruído (de novo liderado por Paulo Portas), aprovada por maioria com os votos a favor também do (regressado) PPD, este, contudo, em vias de se transformar em PSL. A grande novidade será a oposiçao militante do Bispo da Moita, o que lhe custará caro por cauda das pressões do AVP (Alhos Vedros ao Poder). No tempo em que o Presidente da República será, naturalmente, o Dr. Pedro Santana Lopes.

E é assim que seguirá todo este en-fado da política que se vai vivendo cá no Burgo. O Plano Director Municipal, a OTA e o TGV abordaremos mais tarde na secção dos lobbies-homens.

Luis Carlos

Parque Infantil 25 de Abril, à noite.
Foto de Luis Santos

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

DAQUI FALA O MOVIMENTO DAS FORÇAS INTERROGATIVAS

"O Povo Unido Jamais Será vencido"

Recordo esta frase, como se fosse hoje. Era uma máxima popular do pós-vinte e cinco de abril de 74 e através dela se reuniam forças e convicções. Nesse dia não tive aulas. A Escola de Alhos Vedros fechou portas e as pessoas estavam todas na rua. Confesso que foi um dia estranho, que só assimilei mais tarde, dentro daquilo que era possível nos meus onze anos de idade. As festas de 1 de Maio, Dia do Trabalhador, abriram-me algumas portas da minha lucidez ainda muito afectada. Não poderia ser mau: dias sem aulas, festas nas ruas, pessoas felizes, liberdade de expressão e o fim da Guerra Colonial. Nesse dia histórico fomos para Lisboa, ao som das buzinas do Ami 8. No Parque Eduardo VII bandeiras e multidões gritavam em unissono: "O Povo Unido, jamais será vencido". "Fascismo nunca mais". Era insólito, estranho, novo... mas era real. Gritei, porque todos gritavam e nesses prantos de alegria percebi que se tratava do inicio de uma nova Era. Era o primeiro dia do resto das nossas vidas jovens e promissoras.
Outros tempos, tempos idos, convições passadas, ideologias vencidas.Na verdade, hoje em dia as convicções são outras e as energias/ forças estão concentradas/ apontadas noutros sentidos.
O que é verdade é que o povo foi vencido e a democracia já não se compadece com etimologias ou convicções passadas. O governo já não é do povo e já nem se sabe o que é o povo. Aliás, ninguém é povo. Todos se consideram acima do povo ou pelo menos à margem desse antigo cliché.
O que é verdade é que já não reconhecemos a democracia que descobrimos em Abril, nem se sabe ao certo onde se "situa", se bem que todos afirmamos viver num sistema democrático.
Se é verdade que a democracia actual venceu o povo de Abril, também é verdade que é preciso repensar o que é isso de democracia no Portugal do Século XXI. O que é que a UE e a globalização fizeram aos ideais do Vinte Cinco de abril? Onde está o povo que jamais seria vencido? Quem tramou (e calou)o povo que jamais seria vencido?
(Daqui fala o Movimento das Forças Interrogativas (MFI),
com uma série de perguntas e perplexidades.)
Dialógico Ponto Com

domingo, 4 de fevereiro de 2007

FUTURO ALÉM TEJO

Eduardo trabalhava na Cortiça, numa das fábricas mais conhecidas de Vendas Novas, entre muitas as que concorriam pela melhor qualidade do produto, extremamente procurado na altura. Começou ainda jovem, depois de deixar os campos onde "carregava à sua responsabilidade" um dos rebanhos da Casa de Bragança. Com ele muitos jovens que nunca conheceram a Escola, nem as brincadeiras de criança. Aos oito anos era tempo de se fazerem homens e ganhar o sustento da vida.
Marcolino Lopes, Mestre na arte da cortiça, liderava o grupo de homens crescidos à pressa. Eduardo reconhecia a perícia do Mestre, que o antecedia pela fama de excelente profissional.
As coisas complicaram-se quando Eduardo teve a ousadia de pedir a filha de Marcolino em casamento. Nem pensar! Estava fora de questão. A partir dai ela estava proibida de sair sozinha e nos bailes limitava-se a ver dançar. A dança estava interdita. A saída da costura, onde ingressou depois de completar a Quarta Classe, estava vigiada, como se estivesse a prever algum (im)previsto. Era preciso preservar a honra e a seguraça das filhas, com regras e prescrições bem definidas.
A Mundete fechava as portas. Marcolino e seus discípulos estavam no desemprego. Era preciso “procurar vida”. O Janeiro e o António Policarpo, já conheciam a margem sul do Tejo. Tinham vindo a Alhos Vedros e tinham conseguido trabalho. Escreveram uma carta promissora ao Eduardo. Havia emprego! Entre os pequenos fabricos e a Corticeira Ibérica e os Téxteis, pequenas fábricas familiares e a GEFA, era possível escolher ocupação e as condições oferecidas superavam o panorama alentejano.
Poucos dias depois os planos começaram a ser delineados.
Estava tudo combinado. Ao cair da noite, pelas 18 horas, o táxi do Manuel Ropiu parava à porta do número 44 da rua do Polígono. Ele esperava-a dentro do taxi. Logo que ela saísse de casa, o táxi rolaria para o desconhecido. Era uma noite de chuva miudinha. A Nilde sairia da Costura na companhia da prima Lucinda e sem que ninguém conseguisse perceber, deixou uma Carta em cima da máquina de Costura da mãe: “não se preocupem, vou seguir o meu caminho.”

Ele esperava dentro do veículo. Tinha de ser rápido! “Depressa! Para a estação de Bombel”. O nervosismo de uma fuga contrabalançava com um esperança indefinida. Misto de sentimentos, medo e esperança, insegurança e sonho…tudo ao mesmo tempo, confuso, mas promissor. Juntos, apoiados no medo, abriam um novo trilho: um caminho a dois e um misto de abandonos inconfessáveis. Para trás, ficavam as resistências a um namoro proibido, enjeitado pelos pais, mas assumido pelos próprios como opção legítima de vida. Cada vez mais longe, ao ritmo do táxi, ficava um Alentejo preconceituoso e impeditivo.

O Luís Bezugo viu tudo, quando cruzava a rua em direcção ao Ferragôlo. Mas a mudez do vizinho não lhe permitiu contar o sucedido. Ficou atónito a apontar para o horizonte.
Não há tempo a perder…o comboio não espera” Mas…”e o sapato?” Perdeu, caiu. A agitação do momento não deu tempo… esgueirou-se num último esforço de o alcançar. Gesto imprudente! O que estava combinado no maior dos secretismos, foi descoberto. A Vitália viu, viu tudo e declarou a viva voz: “a filha da Zalinda fugiu de casa”.
Deixa”, disse ele, “compramos novos”. Estas palavras compensaram o deslize e dava novo ânimo à viagem. Ele trataria da compra. Que importância teria um sapato, se o compararmos com o raio da terra? A imensidão do momento não se compadecia com pormenores insignificantes. Para trás ficava a ficção realista de sapato perdido, a descoberta de Vitália, as angústias, os impedimentos e um Alentejo dominado por preconceitos, enfim, memórias de uma vida difícil de rejeições e obstáculos.
Já no Comboio para confortar e para ganho de coragem, ele acrescentava: “Casamos em Alhos Vedros…começamos tudo de novo. Os teus pais assim escolheram. E sabes… não somos os primeiros a fugir. Muita gente vai para lá, há mais trabalho … na CUF, na CP . Aqui nada conseguiríamos, aqui trabalha-se toda a vida na cortiça
A avaliar pelo silêncio, ela parecia concordar, comprometendo-se na obsessão de ocultar um pé nu, que só por si denunciava a fuga.
Que viagem memorável! A angústia de uma fuga proibida, compensada pela esperança de uma vida a dois. Barreiro… Alhos Vedros, a proximidade com Lisboa, tudo prometia neste mundo admiravelmente novo. Novo, mas assustador, assim como assusta tudo o que é novo e desconhecido. Mas a escolha estava feita e os pais dela não compreenderiam. Que aflição, essa sensação terrifica de fugir para a liberdade.
Descalça, escondia a confusão do momento. Sem sapatos não somos gente.
Apearam-se em Alhos Vedros, já de manhã. O dia nascia ao ritmo de uma nova vida. Mas estava tudo planeado. Já tinham casa e sustento. De gravata deslocada e gabar dine dobrada no braço esquerdo, limpava o suor incontido de uma longa caminhada.
Chegados ao destino, um amigo do Eduardo esperava os noivos clandestinos.Em passo acelerado deu uma salto à Loja do Sr. Jorge, mesmo em frente à Igreja velha.Minutos depois estava de volta à Estação prometida, trazendo consigo uma caixa branca por abrir. Eduardo olhou para ela com ar confiante e sentenciou: “Toma, calça-te. A partir de agora, nada temos a temer”.

Dialógico e Deonilde Queimado

A FORÇA DO TRABALHO

Memória em verso de um migrante, que substituiu o Alentejo por Alhos Vedros promissor. Decorriam os anos 60 do Século XX quando havia muito trabalho na Cortiça, na Agricultura e nos Texteis. Muita gente veio para perto de Lisboa à procura de melhores condições de vida.
A FORÇA DO TRABALHO
"Trabalho até poder
levantar a enxada;
perdi no campo a saúde
não posso fazer mais nada.
Fui um bom trabalhador,
hoje estou preocupado;
Como já estou reformado
já ninguém me dá valor.
Vá eu onde for
não sei o que hei-de fazer
tenho de compreender
que estou a chegar ao fim,
não tive pena de mim
trabalhei até poder.
Trabalhei de noite e de dia
à chuva, ao frio e ao sol,
nunca fui homem mole;
Trabalhei como sabia
e às vezes até trazia
a roupa toda molhada,
ia ver era suada.
De trabalhar para comer,
às vezes já sem poder,
levantar a enxada.
Comecei a trabalhar
era ainda muito novinho.
Não trabalhava sózinho,
tinham que me acompanhar
talvez para me ensinar.
Eu aprendi como pude,
era um trabalho rude,
um trabalho fatigante
e daí para diante
perdi no campo a saúde.
Em rapaz moço da porta
depois passei a carreiro,
fui servente de pedreiro,
puxei pela foice torta
andei a cavar na horta.
Para ela ser semeada,
ajudei na desfolhada
para o milho debulhar
fartei-me de trabalhar
e não posso fazer mais nada."
Deonilde Lopes Queimado

sábado, 3 de fevereiro de 2007

ESTÓRIAS DE OUTROS VELHOS


É um Blog (já dissemos).É um espaço literário (já foi dito!).O que não se disse, é que pretende ser um espaço aberto, livre e despretensioso (se é que esta palavra existe), embora lierário.Literário, porque se dedica à escrita, mas sem as pretensões descabidas de elitismo ou clubismo. Isto porque as Estórias não têm dono nem estatuto social privilegiado; as estórias do "burgo velho" (Outros Velhos) são património de todos e por isso (repetimos!), não têm dono. Não têm dono, mas têm autores, que desejamos conhecer e publicar. E os autores não têm idade; são jovens e velhos, são apenas e simplesmente as pessoas que têm algo para contar, seja deste tempo ou de outros tempos.
E já agora (não sei se concordam!) com Estórias destas também se faz História. São relatos como estes, que, pertencentes à nossa memória colectiva, podem contribuir em conjunto para a descoberta da nossa identidade cultural (esta agora foi um pouco exagerada, admitimos).Por isso é um Blog de todos os que têm Estórias para contar e para ficcionar.
A verdade pura e dura não existe (provavelmente, não temos a certeza), dai que em nome desse relativismo e em prol da criatividade, as boas estórias têm sempre uma boa dose de invenção. Por isso, conte a(s) sua(s) Estória(s) ou Conto(s) e acrescente o(s) seu(s) "ponto(s)".
Seja bem-vindo!

Publicamos as Vossas Estórias,que podem ser enviadas para:
- velhos.alhos@gmail.com
Autores/ Coordenadores do Blog:
- Luís Carlos Santos
- Luís Manuel Mourinha
- Luís Gomes

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

INTIMIDADES

AQUI POSTO DE COMANDO DAS FORÇAS ARMADAS

Tanto para mim como para alguns amigos meus, a quinta-feira, vinte e cinco de Abril de mil novecentos setenta e quatro, foi um dia sem aulas.
Tinha então quinze anos de idade e, com isso, não se pense que eu era, de todo, um ignorante dessas coisas proibidas da política. Só pelo facto de ser nado e criado numa Vila com história no movimento operário e oposicionista à ditadura do Estado Novo, dificilmente me passaria despercebida a existência desses tabus e, naturalmente, muitas seriam as probabilidades de lhes vir a conhecer os enredos, ou parte, pequena parte, deles, para sermos mais precisos. Mas, sobretudo, acontecia que os adultos da minha família não morriam de amores pelo regime e, se em frente das crianças se abstinham de algumas abordagens, muitas vezes deixava, sair os seus comentários e não era preciso ser lá muito esperto para se perceber os seus ideias liberais e democráticos Em sessenta e nove, por exemplo, recordo a garrafa de espumante que o meu pai e o meu padrinho –o seu irmão mais velho- abriram para comemorar a vitória da oposição na Junta de Freguesia, ainda que a mesma tenha sido irrelevante. Lembro bem não só a alegria, como também o ambiente de silenciosa conjura com que o fizeram:
“-Vá lá Emília.” –Invectivava o meu tio Jofre a minha mãe para que tomasse parte na comemoração. “-Bebe também um gole que, pelo menos aqui, aqueles tiranos não se ficaram a rir.”
Além do que para dois dos meus primos mais velhos, as rebeldias de juventude se confundiam com a frequência de certos, política e até socialmente, pouco recomendáveis, tais como certas colectividades e cine-clubes, da região, onde pululavam os agitadores.
Mesmo com muitos dos miúdos com quem melhor me relacionava acontecia o mesmo. O Rui Madeira, com quem meses antes lera um livrinho de Jean Bruhat sobre Marx e Engels, tinha uma prima que estudava no Técnico, em Lisboa, e que lhe falava daqueles nomes e de Lenine, da revolução russa e da revolução chinesa e depois dizia que os russos eram revisionistas pois tinham traído a causa do povo, como me explicava o primo, quando, por vezes, as conversas entre os dois versavam aquele género de assuntos.
E até tínhamos aventuras nos nossos curriculum o o que, no meu cão, bastava ser a frequência da casa de um doutor qualquer que residia no Barreiro e que, de quando em vez, atirava aviões de papel com mensagens subversivas pela janela do sétimo andar. Tenho a certeza que, da primeira vez, o olhei com a admiração de quem tem pela frente um autêntico Gerado Sem Pavor.
Bem sei que para muitos foi o vinte e cinco de Abril um dia empolgante, em certos aspectos, quase diria épico. Para não falar daquela massa de gente que, em expectativa e apoio dos revoltosos, a partir do meio da tarde começou a invadir os cenários públicos da convulsão e, só para citar um nome, registo Francisco Sousa Tavares que, no Carmo, em nome e em auxílio dos militares, incentivava o povo a permanecer calmo e em ordem, enquanto decorria a negociação para a rendição de Marcelo Caetano e com ela, formalmente, a queda do regime. Antes de todos, em primeiríssimo lugar, está o Capitão Salgueiro Maia, quanto a mim, figura digna do panteão dos grandes heróis nacionais.
Tais são as memórias de quem assistiu, não em directo, como, hoje em dia, se gosta de sublinhar, mas ao vivo, ao derrube da tirania.
Sem embargo, no que me diz respeito, é como lhes disse, já não sendo ceguinho quando a revolução dos cravos estalou, mentiria se aqui pretendesse outra coisa; o dia vinte e cinco de Abril foi, sobretudo, um dia sem aulas e nada para fazer.
O meu primeiro contacto com os acontecimentos foi um comunicado do MRPP que li, numa tarjeta, entre as muitas que estavam espalhadas pelos passeios. Como tinha aulas matinais no Liceu do Barreiro, costumava tomar a camioneta da carreira do Montijo por volta das sete e trinta e ainda não tinha compreendido a comunicação que alertava a população para o perigo de se envolver no que supostamente era um golpe dos ultra capitaneados por Kaúlza de Arriaga, quando um rapaz de rádio ao ouvido me explicou que não se sabia bem o que era. A Emissora Nacional estava a transmitir música e de vez em quando liam um comunicado de um movimento das forças armadas, em que se pedia à população para permanecer calma e fazer a sua vida normal e em que se afirmava estar em curso um golpe militar para acabar com o regime. Chegado à escola, todo eu curiosidades, o Victor Matos que tinha um tio paterno a cumprir pena em Peniche, tratou de me avisar para ter cuidado por ali andarem agentes da PIDE. Devo confessar que mais tarde apurámos que se tratavam de indivíduos que, ao abrigo da lei militar, se propunham a prestar provas para uns exames quaisqueres.
Logo na primeira aula, alguns dos alunos bombardearam a Professora de Francês com perguntas. Ninguém deu matéria, o Professor de História chegou a falar no problema da guerra em África e, pelo fim da manhã, fomos todos para casa, dado o estabelecimento de ensino encerrar as portas para o resto da jornada.
De tarde lá me encontrei com uns quantos amigos que tal como eu, tinham ganho um feriado inesperado.
É verdade que ao princípio da noite desse mesmo dia, desfilou entre o Barreiro e o Lavradio uma manifestação de apoio e reconhecimento ao Movimento da Forças Armadas e à Junta de Salvação Nacional que iria provisoriamente governar o país e após o jantar, quando reencontrei os meus amigos na colectividade do costume, já todos sabíamos que tinha acontecido uma grande mudança política.
Contudo, nessa tarde, eu e mais dois ou três amigos, se não estou em erro, o Rui, o Luís Carlos e o Zé Carlos Simas, passámo-la toda a jogar a um jogo que consistia em atingir com uma garrafa o vasilhame de um adversário, vencendo aquele que partisse a do outro, com a regra de que, sempre que o nosso vidro tocasse o alheio tínhamos direito a repetir a jogada.
Quanto a mim, a curiosidade está no facto de ter sido a única vez que participei em tal género de jogatina.

Portalegre
19 de Fevereiro de 1996