domingo, 4 de fevereiro de 2007

FUTURO ALÉM TEJO

Eduardo trabalhava na Cortiça, numa das fábricas mais conhecidas de Vendas Novas, entre muitas as que concorriam pela melhor qualidade do produto, extremamente procurado na altura. Começou ainda jovem, depois de deixar os campos onde "carregava à sua responsabilidade" um dos rebanhos da Casa de Bragança. Com ele muitos jovens que nunca conheceram a Escola, nem as brincadeiras de criança. Aos oito anos era tempo de se fazerem homens e ganhar o sustento da vida.
Marcolino Lopes, Mestre na arte da cortiça, liderava o grupo de homens crescidos à pressa. Eduardo reconhecia a perícia do Mestre, que o antecedia pela fama de excelente profissional.
As coisas complicaram-se quando Eduardo teve a ousadia de pedir a filha de Marcolino em casamento. Nem pensar! Estava fora de questão. A partir dai ela estava proibida de sair sozinha e nos bailes limitava-se a ver dançar. A dança estava interdita. A saída da costura, onde ingressou depois de completar a Quarta Classe, estava vigiada, como se estivesse a prever algum (im)previsto. Era preciso preservar a honra e a seguraça das filhas, com regras e prescrições bem definidas.
A Mundete fechava as portas. Marcolino e seus discípulos estavam no desemprego. Era preciso “procurar vida”. O Janeiro e o António Policarpo, já conheciam a margem sul do Tejo. Tinham vindo a Alhos Vedros e tinham conseguido trabalho. Escreveram uma carta promissora ao Eduardo. Havia emprego! Entre os pequenos fabricos e a Corticeira Ibérica e os Téxteis, pequenas fábricas familiares e a GEFA, era possível escolher ocupação e as condições oferecidas superavam o panorama alentejano.
Poucos dias depois os planos começaram a ser delineados.
Estava tudo combinado. Ao cair da noite, pelas 18 horas, o táxi do Manuel Ropiu parava à porta do número 44 da rua do Polígono. Ele esperava-a dentro do taxi. Logo que ela saísse de casa, o táxi rolaria para o desconhecido. Era uma noite de chuva miudinha. A Nilde sairia da Costura na companhia da prima Lucinda e sem que ninguém conseguisse perceber, deixou uma Carta em cima da máquina de Costura da mãe: “não se preocupem, vou seguir o meu caminho.”

Ele esperava dentro do veículo. Tinha de ser rápido! “Depressa! Para a estação de Bombel”. O nervosismo de uma fuga contrabalançava com um esperança indefinida. Misto de sentimentos, medo e esperança, insegurança e sonho…tudo ao mesmo tempo, confuso, mas promissor. Juntos, apoiados no medo, abriam um novo trilho: um caminho a dois e um misto de abandonos inconfessáveis. Para trás, ficavam as resistências a um namoro proibido, enjeitado pelos pais, mas assumido pelos próprios como opção legítima de vida. Cada vez mais longe, ao ritmo do táxi, ficava um Alentejo preconceituoso e impeditivo.

O Luís Bezugo viu tudo, quando cruzava a rua em direcção ao Ferragôlo. Mas a mudez do vizinho não lhe permitiu contar o sucedido. Ficou atónito a apontar para o horizonte.
Não há tempo a perder…o comboio não espera” Mas…”e o sapato?” Perdeu, caiu. A agitação do momento não deu tempo… esgueirou-se num último esforço de o alcançar. Gesto imprudente! O que estava combinado no maior dos secretismos, foi descoberto. A Vitália viu, viu tudo e declarou a viva voz: “a filha da Zalinda fugiu de casa”.
Deixa”, disse ele, “compramos novos”. Estas palavras compensaram o deslize e dava novo ânimo à viagem. Ele trataria da compra. Que importância teria um sapato, se o compararmos com o raio da terra? A imensidão do momento não se compadecia com pormenores insignificantes. Para trás ficava a ficção realista de sapato perdido, a descoberta de Vitália, as angústias, os impedimentos e um Alentejo dominado por preconceitos, enfim, memórias de uma vida difícil de rejeições e obstáculos.
Já no Comboio para confortar e para ganho de coragem, ele acrescentava: “Casamos em Alhos Vedros…começamos tudo de novo. Os teus pais assim escolheram. E sabes… não somos os primeiros a fugir. Muita gente vai para lá, há mais trabalho … na CUF, na CP . Aqui nada conseguiríamos, aqui trabalha-se toda a vida na cortiça
A avaliar pelo silêncio, ela parecia concordar, comprometendo-se na obsessão de ocultar um pé nu, que só por si denunciava a fuga.
Que viagem memorável! A angústia de uma fuga proibida, compensada pela esperança de uma vida a dois. Barreiro… Alhos Vedros, a proximidade com Lisboa, tudo prometia neste mundo admiravelmente novo. Novo, mas assustador, assim como assusta tudo o que é novo e desconhecido. Mas a escolha estava feita e os pais dela não compreenderiam. Que aflição, essa sensação terrifica de fugir para a liberdade.
Descalça, escondia a confusão do momento. Sem sapatos não somos gente.
Apearam-se em Alhos Vedros, já de manhã. O dia nascia ao ritmo de uma nova vida. Mas estava tudo planeado. Já tinham casa e sustento. De gravata deslocada e gabar dine dobrada no braço esquerdo, limpava o suor incontido de uma longa caminhada.
Chegados ao destino, um amigo do Eduardo esperava os noivos clandestinos.Em passo acelerado deu uma salto à Loja do Sr. Jorge, mesmo em frente à Igreja velha.Minutos depois estava de volta à Estação prometida, trazendo consigo uma caixa branca por abrir. Eduardo olhou para ela com ar confiante e sentenciou: “Toma, calça-te. A partir de agora, nada temos a temer”.

Dialógico e Deonilde Queimado

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