sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

INTIMIDADES

AQUI POSTO DE COMANDO DAS FORÇAS ARMADAS

Tanto para mim como para alguns amigos meus, a quinta-feira, vinte e cinco de Abril de mil novecentos setenta e quatro, foi um dia sem aulas.
Tinha então quinze anos de idade e, com isso, não se pense que eu era, de todo, um ignorante dessas coisas proibidas da política. Só pelo facto de ser nado e criado numa Vila com história no movimento operário e oposicionista à ditadura do Estado Novo, dificilmente me passaria despercebida a existência desses tabus e, naturalmente, muitas seriam as probabilidades de lhes vir a conhecer os enredos, ou parte, pequena parte, deles, para sermos mais precisos. Mas, sobretudo, acontecia que os adultos da minha família não morriam de amores pelo regime e, se em frente das crianças se abstinham de algumas abordagens, muitas vezes deixava, sair os seus comentários e não era preciso ser lá muito esperto para se perceber os seus ideias liberais e democráticos Em sessenta e nove, por exemplo, recordo a garrafa de espumante que o meu pai e o meu padrinho –o seu irmão mais velho- abriram para comemorar a vitória da oposição na Junta de Freguesia, ainda que a mesma tenha sido irrelevante. Lembro bem não só a alegria, como também o ambiente de silenciosa conjura com que o fizeram:
“-Vá lá Emília.” –Invectivava o meu tio Jofre a minha mãe para que tomasse parte na comemoração. “-Bebe também um gole que, pelo menos aqui, aqueles tiranos não se ficaram a rir.”
Além do que para dois dos meus primos mais velhos, as rebeldias de juventude se confundiam com a frequência de certos, política e até socialmente, pouco recomendáveis, tais como certas colectividades e cine-clubes, da região, onde pululavam os agitadores.
Mesmo com muitos dos miúdos com quem melhor me relacionava acontecia o mesmo. O Rui Madeira, com quem meses antes lera um livrinho de Jean Bruhat sobre Marx e Engels, tinha uma prima que estudava no Técnico, em Lisboa, e que lhe falava daqueles nomes e de Lenine, da revolução russa e da revolução chinesa e depois dizia que os russos eram revisionistas pois tinham traído a causa do povo, como me explicava o primo, quando, por vezes, as conversas entre os dois versavam aquele género de assuntos.
E até tínhamos aventuras nos nossos curriculum o o que, no meu cão, bastava ser a frequência da casa de um doutor qualquer que residia no Barreiro e que, de quando em vez, atirava aviões de papel com mensagens subversivas pela janela do sétimo andar. Tenho a certeza que, da primeira vez, o olhei com a admiração de quem tem pela frente um autêntico Gerado Sem Pavor.
Bem sei que para muitos foi o vinte e cinco de Abril um dia empolgante, em certos aspectos, quase diria épico. Para não falar daquela massa de gente que, em expectativa e apoio dos revoltosos, a partir do meio da tarde começou a invadir os cenários públicos da convulsão e, só para citar um nome, registo Francisco Sousa Tavares que, no Carmo, em nome e em auxílio dos militares, incentivava o povo a permanecer calmo e em ordem, enquanto decorria a negociação para a rendição de Marcelo Caetano e com ela, formalmente, a queda do regime. Antes de todos, em primeiríssimo lugar, está o Capitão Salgueiro Maia, quanto a mim, figura digna do panteão dos grandes heróis nacionais.
Tais são as memórias de quem assistiu, não em directo, como, hoje em dia, se gosta de sublinhar, mas ao vivo, ao derrube da tirania.
Sem embargo, no que me diz respeito, é como lhes disse, já não sendo ceguinho quando a revolução dos cravos estalou, mentiria se aqui pretendesse outra coisa; o dia vinte e cinco de Abril foi, sobretudo, um dia sem aulas e nada para fazer.
O meu primeiro contacto com os acontecimentos foi um comunicado do MRPP que li, numa tarjeta, entre as muitas que estavam espalhadas pelos passeios. Como tinha aulas matinais no Liceu do Barreiro, costumava tomar a camioneta da carreira do Montijo por volta das sete e trinta e ainda não tinha compreendido a comunicação que alertava a população para o perigo de se envolver no que supostamente era um golpe dos ultra capitaneados por Kaúlza de Arriaga, quando um rapaz de rádio ao ouvido me explicou que não se sabia bem o que era. A Emissora Nacional estava a transmitir música e de vez em quando liam um comunicado de um movimento das forças armadas, em que se pedia à população para permanecer calma e fazer a sua vida normal e em que se afirmava estar em curso um golpe militar para acabar com o regime. Chegado à escola, todo eu curiosidades, o Victor Matos que tinha um tio paterno a cumprir pena em Peniche, tratou de me avisar para ter cuidado por ali andarem agentes da PIDE. Devo confessar que mais tarde apurámos que se tratavam de indivíduos que, ao abrigo da lei militar, se propunham a prestar provas para uns exames quaisqueres.
Logo na primeira aula, alguns dos alunos bombardearam a Professora de Francês com perguntas. Ninguém deu matéria, o Professor de História chegou a falar no problema da guerra em África e, pelo fim da manhã, fomos todos para casa, dado o estabelecimento de ensino encerrar as portas para o resto da jornada.
De tarde lá me encontrei com uns quantos amigos que tal como eu, tinham ganho um feriado inesperado.
É verdade que ao princípio da noite desse mesmo dia, desfilou entre o Barreiro e o Lavradio uma manifestação de apoio e reconhecimento ao Movimento da Forças Armadas e à Junta de Salvação Nacional que iria provisoriamente governar o país e após o jantar, quando reencontrei os meus amigos na colectividade do costume, já todos sabíamos que tinha acontecido uma grande mudança política.
Contudo, nessa tarde, eu e mais dois ou três amigos, se não estou em erro, o Rui, o Luís Carlos e o Zé Carlos Simas, passámo-la toda a jogar a um jogo que consistia em atingir com uma garrafa o vasilhame de um adversário, vencendo aquele que partisse a do outro, com a regra de que, sempre que o nosso vidro tocasse o alheio tínhamos direito a repetir a jogada.
Quanto a mim, a curiosidade está no facto de ter sido a única vez que participei em tal género de jogatina.

Portalegre
19 de Fevereiro de 1996

2 comentários:

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

"O Povo Unido Jamais Será vencido"


Recordo esta frase, como se fosse hoje. Era uma máxima popular do pós-vinte e cinco de abril de 74 e através dela se reunia forças e convicções.

Outros tempos, tempos idos, convições passadas, ideologias vencidas.

Na verdade, hoje em dia as convicções são outras e as energias/ forças estão concentradas/ apontadas noutros sentidos.

O que é verdade é que o povo foi vencido e a democracia já não se compadece com etimologias ou convicções passadas. O governo já não é do povo e já nem se sabe o que é o povo. Aliás, ninguém é povo. Todos se consideram acima do povo ou pelo menos à margem desse antigo cliché.

O que é verdade é que já não reconhecemos a democracia que descobrimos em Abril, nem se sabe ao certo onde se "situa", se bem que todos afirmamos viver num sistema democrático.

Se é verdade que a democracia actual venceu o povo de Abril, também é verdade que é preciso repensar o que é isso de democracia no Portugal do Século XXI.

O que é que a UE e a globalização fizeram aos ideais do Vinte Cinco de abril?

Onde está o povo que jamais seria vencido?

Quem tramou (e calou)o povo que jamais seria vencido?

(Daqui fala o Movimento das Forças Interrogativas de Portugal(MFIP), com uma série de perguntas e perplexidades.)


Luís Mourinha

February 3, 2007 11:00 AM