quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Fábula do Amor (1)

Barreiro, 2004 !

Apagou-se o sol no quarto agora vazio.

Ana olhou o espelho e mediu a sua solidão. O tempo da maturidade chegara até ela e as ponderações da idade impeliam-na frequentemente a uma retrospecção da sua existência.
Acontecera ! Todos os amores se transformam um dia.

Joaquim partira do lar porque encontrara Sofia, e as suas palavras de adeus contavam-lhe que esta lhe preenchera o vácuo a que Ana tanto o votara na longa ausência dos dias.

Ana era decoradora de interiores e mãe de três sorrisos lindos. Raquel, Carolina e Mariana. A dinâmica da sua vida profissional obrigava-a a horários inconstantes. Deslocações a casas familiares e empresas, Palmela, Setubal, Lisboa, projectos e equipas multidisciplinares pela vigília da noite.

O tempo também se cansa, e apesar de toda a sua energia ela esqueceu as margens do rio que flui. O seu quotidiano tornara-se um esforço e as palavras doces que alentam a alma ou os pequenos gestos que alegram o coração rareavam entre o casal, dando lugar a uma linguagem do silêncio em que o monstro devora vagarosa e irreversivelmente o humano.

Joaquim era um trabalhador de rotina. Ocupava um cargo de chefia intermédia no posto de correios local, e mesmo com toda a pressão de reformas administrativas e financeiras das competências postais do país, pautava o relógio do tempo com hábitos precisos e interiorizados. Homem de parcas iniciativas e pouco propenso à mudança, era todavia fiel aos seus amores e princípios, vestido bonomia e transmitindo a confiança dum pratiarca. Amava as suas filhas e jamais esquecia de beijar os seus sonhos quando a rotina lhe trazia horas de vigília. Amante de desporto e de jogos de azar e aspirante a autarca, não dispensava um convívio breve na sede do Luso ou do Barreirense, onde exorcizava com clamor o seu direito de opinião.

Penteando os seus longos cabelos cor de verdade, Ana ainda era bela. A alquimia do tempo transmutara-lhe o corpo e elevara-lhe o espírito. De olhos glaucos e nariz aquilino, sustentava num sorriso ainda imberbe a felicidade de infância e a quimera da saudade.

Sim, sempre amara única e verdadeiramente Joaquim, desde os primórdios da adolescência. Tinham-se conhecido no jardim central da vila e havia sentido a primeira cumplicidade do corpo e alma num baile idílico de Verão dançando e louvando a vida na colectividade dos Franceses. Fora verdadeiramente o primeiro homem a quem se entregara na plenitude de si e a quem a intuição feminina escolhera para partilhar o núcleo da sua existência.

Da força da sua memória e da solidez do seu coração interrogava-se a si mesma porque definhara a sua união. Ausência de partilha, dissipação da juventude, distracção do amor-próprio , variáveis sociais, tempo sem tempo ou escolha indevida ?

Por muito que acreditasse na espontaneidade do amor, ela sabia que a vida é um labor constante e que a verdadeira afeição se cristaliza paulatinamente tanto na espiral da relação como na eternidade do momento. Sempre colocara nos seus actos o fragor da paixão. Cuidara ela o bastante das pessoas mais importantes da sua vida, valorizando-as e animando-as tanto na euforia e na tristeza ? Soubera ela deixar os outros serem aquilo que são, aceitando erros e aclamando vitórias ? Onde se olvidavam o encanto dos sorrisos e o feitiço do seu olhar ?

Porque procurara Joaquim uma outra mulher, nem mais bela, nem mais alegre, nem mais dinâmica do que si mesma ? Qual a suficiência de Sofia trazida à condição de homem representada em Joaquim ? Há justiça no amor ?

Ana afastou-se do espelho, cobrindo os ombros desnudados. Lá fora, a chuva cadenciada vestia as ruas despidas de vida e o breu da noite engolia as luzes ténues de néon.

Lágrimas soltas fecundavam o seu rosto sedoso e as pálpebras cansadas anunciavam a foz do dia. Saberia Ana voltar a amar ?

(….)

Flávio Meireles

16 comentários:

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Enquanto continuamos a pensar na pobreza, o Flávio teve a gentileza de nos enviar uma estória. Decerto constituirá uma boa fonte de inspiração para todos nós.

Flávio M. disse...

Estimadas Estórias !

Os agradecimentos sinceros pela célere publicação desta tentativa própria de incursão pelo conto, onde tento auscultar e decifrar um pouco da complexidade inata à natureza humana.

Cmps

Flávio M.

Estudo Geral disse...

Boa Flávio. Está bonito o conto. Bem escrito, bom ritmo, boas palavras, sentimentos tristes (os da Ana).

O desgaste da paixão, o fim do amor, o cansaço da eterna presença. Acontece muitas vezes, não é?

Também o rio, que nós tantos vivemos é feito de chegadas e partidas, de encontros e desencontros. Quase como as águas no seu eterno vai-vém.

A nós já bastava desaguar, quanto mais...

Obrigado,
Luis Santos

França disse...

Que agradável surpresa! Adorei!

Este conto tem muito de comum com um acontecimento bem real. E tantas coincidências!? E mais não digo.
Grata pelos momentos de agradável leitura, Flávio(?).

Teresa.

Flávio M. disse...

Agradeço Luís a simpatia e a estética apurada dos seus comentários. Bem preciso de motivação para a devida continuidade. Sim, nele se tenta falar da efemeridade da paixão, da alquimia do amor e da pertinência optativa entre o amor a um só objecto ou o amor universal.
Adequada a referência ao rio de Heraclito ou o hino da existência.
Chegar à foz como estágio último da paz connosco mesmos ou o cumprir dum(s) sentido(s) de destino. Saibamos pintar o amor com as cores do sol, das flores e do mar e os sentimentos tristes (ou reflexivos) de Ana (de que será feita a matéria do amor ?)tornar-se-ão esperança, involução e caminho.
Bem haja !

Flávio M.

Flávio M. disse...

Remy/Teresa,

sempre atenta e também profética ... São as coincidências da condição humana: falível, regenerativa mas bela. Acontecimento real ?
"Volvi o olhar e divisei um menino inundado em lágrimas. O dia vestia de sol e eu disse-lhe: criança, porque choras ? Onde estão so teus sorrisos ? Olha bem alto no céu a estrela que nos anima e acaricia todos os dias do mundo, sem nada exigir e pensa como a vida é simples e gratificante". Naquele dia em que a paixão se tornou quimera, havia sido um sonho onde eu perseguira a essência do amor...

Flávio M.

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Caro amigo Flávio, muito nos honraria se se dignasse enviar um tema para con-versa no Movimento das Forças Interrogativas. Podemos contar?

O repto, como sabem, serve para todos os que partilham este espaço. Mas para que as questões não se atropelem vamos aguardar a resposta do Flávio.

P'lo Estórias,
Luis Santos

philos disse...

Flávio:
Apesar de às vezes "ter uma boca grande", herança de minha mãe. Neste momento manda o bom senso, que fique bem caladinha!

Adorei este conto, como lhe chama, principalmente porque o sinto ...

Teresa.

@--}--- de £ótus disse...

Tristemente, tudo é efémero! E mesmo, o que começa parecendo forte e duradouro, com o tempo, vai-se desgastando.
Ana e Joaquim, dois personagens, que "escrevem" a verdade de um amor(?)acabado.

"(...)Porque procurara Joaquim uma outra mulher, nem mais bela, nem mais alegre, nem mais dinâmica do que si mesma ? Qual a suficiência de Sofia trazida à condição de homem representada em Joaquim? Há justiça no amor?(...)"

E eu pergunto:
Há Amor?

Foi uma leitura que fiz, com enorme prazer, fico a aguardar a continuação...

Bjs.
Ana Paula

Flávio M. disse...

Estimadas Estórias !

Podem certamente considerar o envio temático. Farei a minha sugestão durante o dia de amanhã pois gostaria de reflectir um pouco sobre a adequabilidade da mensagem.

Atentamente

Flávio M.

Flávio M. disse...

Olá Ana !

Agradeço o seu intuitivo contributo, escrito na singeleza e singularidade do universo de mulher.
Sabe Ana, mau grado o desgaste, apesar do desencanto e da desilusão, ainda acredito na perenidade do amor entre as pessoas. É certo que ninguém se completa ou preenche mutuamente na plenitude, apesar da mónada que habita em nós.
Há o amor ao mundo e o amor à vida. Neles se significa a consciência de nós. Quanto aos nossos semelhantes, talvez figurem somente uma interpretação do nosso Ser enquanto entes.
Num mundo de contingência, valham-nos os momentos de eternidade, onde possamos ser aquilo que É.
Bem haja !

Flávio M.

Unknown disse...

"A lovely story with regret" !
Se há amor ?
Falamos dum solo imprevisível e inaudito em que a resposta vem uma paixão depois.
"And the next chapter" ?

Eduardo P.

philos disse...

Eduardo P.

Finalmente "deu à costa"! Fiquei contente.

Teresa.

Unknown disse...

Hi Teresa (?) !

Por vezes o espírito encontra-se suspenso, talvez à procura da matéria a quem irá revestir. "Dei à costa" mas são sensuais e frágeis os flancos quando o "inimigo" planeia atacar. Nesta sociedade da velocidade, da utopia e do consumo, a previdência ganha cada vez mais lugar .

Eduardo P.

philos disse...

Eduardo P.

Tem toda a razão. Concordo.

Teresa.

Unknown disse...

Seja quem for Flávio, a sua ficção parece bem próxima da realidade de tantos conhecidos e amigos.
Alguém merece o nosso amor ?
Como pode subitamente alguém preencher o lugar do outro, parecendo nada mais haver do que troca ou fingimento ?
Tive um velho tio que se separou de minha tia aos 82 anos. Perguntaram-lhe porquê e o que faria no tempo que lhe restava. Ele respondeu: "não me separei, separámo-nos, porque se esgotou o encantamento. Nada do que um fazia agrada já ao outro. Eu acordava com as galinhas, ela dormia; eu cantava ela criticava, eu tratava do quintal e ela via telenovelas; até os nossos corpos deixaram de se conhecer, quando nos procurávamos; eu gostava de futebol e ela de calhandrar com as vizinhas; os filhos partiram e olhos que não vêem coração que não sente. Decidi ir para um asilo pois lá terei a oportunidade de conhecer um pouco mais do mundo, sabendo que existirão muitas pessoas diferentes, mas também muitas pessoas semelhantes. Vou adiar a minha sepultura mas mesmo assim respeitar aquela que me acompanhou nos dias. Serei um amigo que lhe leva flores e que a convidará para passear, porque quero que os tempos de felicidade sempre vivam na minha memória".

Boa tarde !

Fernando