sábado, 31 de março de 2007

Intimidades

A VÉLHINHA

A Velhinha é uma colectividade de raiz oitocentista, das muitas que há pelo Sul do país, outrora pendendo mais para os domínios musicais e cénicos de que ainda hoje lhe resta o nome, actualmente sobretudo virada para a prestação de serviços desportivos aos sócios, em particular, e à comunidade de uma maneira geral.
O epíteto advém-lhe do facto de ser a mais antiga da região e, certamente, uma das pioneiras a nível nacional. Foi fundada em mil oitocentos sessenta e nove e, desde então, muitas gerações por ali passaram, crescendo, naturalmente, pela experiência cívica da vida associativa e, até, tão só, pelo lado lúdico de um copito ou de um pé de dança.
Ali há história, antes de mais documental, para que a historiografia se entretenha, mas bem mais importante na sua presença, sob a forma de iconografia variada, hoje em dia concentrada nas salas dos corpos sociais e dos gabinetes de trabalho, se bem que, pela minha meninice se espalhasse pelas paredes de corredores e divisória ampla que se repartia pelos espaços do bufete e dos bilhares.
Ninguém deve escarnecer destas casas e muito menos das pessoas que lhes dão vida e das realizações que aí levam a cabo. Antes pelo contrário, só as podemos entender enquanto bênçãos se considerarmos que, por via delas, os mais pobres souberam o que é a música e o teatro, tiveram à disposição diversos géneros literários e, prima dona, para uma pátria como a nossa, coitadinha, tão agastada de tiranias e olhos e ouvidos de várias raças de imperadores, primeiro que tudo, dizia, aí teve o povoléu a possibilidade de laboratoriar comportamentos e hábitos submetidos às regras democráticas de organizar as relações em comum.
Pois, as meninas Alices dos telefones podem ser ridículas na dramaturgia, mas que mal vem ao mundo por causa disso?
Certo é que em tais repositórios de anedotas se ensinaram a cultivar responsabilidades a todos aqueles que por lá deixaram fruir as suas generosidades e vaidades.
Não sou especialista nesta temática e, tanto quanto sei, são poucos os estudos de carácter científico sobre estes fenómenos associativos. De qualquer forma e, desde logo, admitindo poder estar a sustentar patetices, diz-me a intuição que terão sido mais ou menos tais desideratos que estiveram na ideia que lhes deu origem. No caso da Velhinha, não sei pela mola de algum estrangeirismo, fundada sob os auspícios de um tal Marquês de Sampaio que, à época, tinha fama de ser liberal, não devo errar muito sustentado que a sua constituição teve em vista proporcionar a recreação e a alegria às gentes do burgo, mas também, de preferência, no âmbito mais sociológico da cultura cívica. Pelo menos é o que se pode aprender na leitura das actas das assembleias-gerais do princípio do século e até pelas actividades registadas nas actas das sucessivas reuniões de direcções.
Pessoalmente, tenho a honra de ter sido, por um ano, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral, cargo outrora exercido pelo meu avô e posteriormente pelo meu pai.
Foi por isso que tive livre acesso aos livros antigos e em eles soube, por exemplo, ter sido o coreto –que sobre o umbral da porta tem a data de mil novecentos e vinte- uma obra da iniciativa e labor das pessoas ligadas à banda filarmónica, com a curiosidade de, na angariação de fundos, ter o auxílio de uma comissão de meninas, presidida pela então menina Laura Valentim que, mais tarde, viria a ser a Professora que entre reguadas e orelhas de burro, por mais de uma trintena de anos, ministrou o primeiro e o segundo grau à gaiatada da Vila. Mas também lá estão historiografados os intercâmbios com irmãs de outras terras, como o ilustra o passeio à simpática Vila das Caldas da Rainha, para usar uma expressão dos próprios anais, do qual constou um agradável piquenique, como visita de retribuição pelo concerto que os homens de lá tinham dado para os meus conterrâneos no Verão anterior. E até a zaragata em que o Tio João Mosca enfiou o trombone pela cabeça do Manelinho sapateiro e da qual veio a resultar a cisão na filarmonia que acabou por dar origem a uma outra colectividade, isto nos anos da guerra e a propósito de uma pirraça que algum germanófilo fez com a queda de Dunquerque.
Desde que me conheço frequento aqueles tectos. Primeiro pela mão paterna, mas rapidamente por moto próprio, ali me fiz mestre de carambolas, namorei e, em parte, me fui fazendo homem.
Como tudo na vida também a Velhinha já mudou o rosto e os interiores e em nada se assemelha com os espaços que na minha memória têm guarida.
Hoje deambulo por lá com o mesmo à vontade que o faço em qualquer outro lugar e não sei se a miudagem ainda sente o peso da obrigação de fazer silêncio. Mas a memória da minha infância prende-se, precisamente, com essa possibilidade de escutarmos o tiquetaque do relógio de parede que estava no bar. A televisão, quando apareceu, tinha o seu próprio destaque por sobre uma mesinha com mais de dois metros de altura, a fim de ser avistada de todas as cadeiras de uma plateia que, à sua frente, se alinhava numa parcela do salão de baile.
A menos que tudo estivesse em festa, havia sempre alguém que velaria para que o sossego dos sócios não fosse perturbado.
A mim, eram as salas de leitura e a biblioteca que mais respeito me incutiam. Não sei se pela presença dos homens que, na primeira, sempre estavam atentos ao diário ou conversando em voz baixa, se pelos retratos, alguns amarelecidos, de bigodões que passavam à posteridade por obra do mérito, não sei se por uma coisa ou pela outra ou ainda se pelo facto de o meu primo Zé Carlos ensaiar previamente o pedido do livro que queria, justamente, à porta da entrada, sempre que aquelas vidraças pintadas me deixavam avistar as cadeiras de recosto ou as estantes, sentia aquilo que agora poderia definir como uma inibição comportamental e, de mãos nos bolsos e cabeça baixa, ali estava eu quando isso era necessário, perguntado apenas o imprescindível e, de resto, limitando-me a falar apenas em face das perguntas.
Mo fundo, sabíamos bem que os mais crescidos não gostavam nada de serem incomodados pelos garotos.

Alvalade do Sado
27 de Fevereiro de 1996

6 comentários:

CIDE disse...

SFRUA, a "Velhinha" faz parte integrante de Alhos Vedros. Espaço incontornável para muitas gerações.
Para mim, foi espaço de crescimento e desenvolvimento como pessoa. Conheço a Velhinha desde que nasci e foi lá que andei de patins, pratiquei Hokey,joguei Basket, dancei Ballet, namorei, frequentei os Bailes, aprendi Bilhar... enfim, muita vivência e muitas experiências partilhadas, que fizeram parte da minha vida.

Luís Mourinha

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Pois é Mourinha, foi para ti e para mim e para muitíssimos outros e muitíssimo antes de nós e esperemos que muitíssimo depois de nós também. Também ali nos fizemos homens, não foi e não duvido que este género de casas continuam a fazer sentido enquanto elementos de socialização e no que muito mais elas são, em que permanecem como espaços a que os mais deserdados podem aceder a actividades e manifestações culturais de que estão pelas contingências das coisas praticamente arredados e, mais importante que tudo isso, continuam a ter aqueles espaços a pertinência de propiciarem a expressão de comportamentos e atitudes e discurs e leituras que contrariem o pensamento e os costumes únicos para que a sociedade de consumo, com as suas leis próprias, nos tende a empurrar.
Por acaso até poderíamos arranjar forma de organizarmos um debate entre bloguistas ali, na "Vélhinha", justamente a respeito deste fenómeno interessante que é o universo dos blogues. O que me dizes a isto?
Mourinha, não tens uma opinião a respeito da conversa que está em curso "No Largo da Graça"?
Aquele abraço, companheiro

Luís

ESTÓRIAS DE ALHOS VEDROS disse...

Eu nasci e cresci ali mesmo ao pé da "Vélhinha". Ali passei parte significativa da infância e da adolescência. Portanto, é legítimo dizer que com ela fui crescendo e que ela foi envelhecendo comigo. São aos molhos as estórias que poderei desfiar sobre ela. Mas não agora.

Para já só gostava de dizer que a minha ruptura com a "Vélhinha", iniciou-se com o 25 de Abril de 74 e com a tomada da colectividade pelo PC. Ainda lá passei mais algum tempo, mas as necessidades não eram compatíveis com as pessoas, as ideias e as actividades que lá se foram desenvolvendo, e fui crescer para outro lado.
Já faz quase trinta anos. Tenho lá voltado amiúde, mas desde aí, nunca mais foi como dantes. Talvez mesmo para sempre. Quem sabe...

Luis Santos

Irritadinha disse...

Uma belíssima descrição que ressalva bem a importância de colectividade como a "Velhinha" no desenvolvimento pessoal e social de da individuo, que marcam de forma inquestionável quem as frequenta.

Parabéns pelo excelente texto.

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Pois é companheiro,quem sabe se não regressarás com o mesmo entusiasmo pretérito quando o projecto da biblioteca estiver reactivado e a funcionar como deve ser. É verdade que esta a ser um parto bem mais difícil do que pensava, mas estas são sempre assim e, não desestindo, lá chegaremos. Então voltarás a gostar de ir ali e vamos fazer para que todos nós ali reencontremos o ponto de encontro que se perdeu com o fim do Clube da Júlia, a minha primeira namorada e que acabou por arrnjar para nós o único café onde os clientes entravam pelo balcão para se servirem enquanto a dona lia descansadamente, no melhor da sua vida.
É isso que afinal se pretende que venha a acontecer nos espaços da bilbioteca e da ludoteca e de convívio, um ponto de encontro, de conversa e como sempre de amizade e crescimento, enquanto sonhamos com um dia de amanhã melhor.
Aquele abraço, companheiro e atéao jantar de Sábado,mais um dos reencontros das nossas vidas e para encanto das mesmas, não concordas?

Luís

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Obrigada pelas tuas palavras,minha querida amiga e deixa que te diga que de facto estas casas ainda hoje têm a importância de propiciarem aos mais pobres de recursos tomarem contacto com manifestações culturais e outras a que, por outras vias e meios e desideratos próprios, provavelmente jamais teriam acesso.
É muito bonito ver a minha amiga Sofia por aqui e ainda mais me alegra aquilo que escreveu.
Tudo de bom para a Sofia

Teu fã incondicional
Luís