O ANIMATÓGRAFO
A terreola usufruiu de uma sala de cinema aproximadamente durante meio século e quando ela encerrou, por ordem da Direcção-Geral dos Espectáculos, no princípio da década de oitenta, dadas as condições de segurança do edifício porem em risco a integridade física dos eventuais utentes, já que o piso do balcão ameaçava abater a qualquer momento, só um bom par de anos mais tarde dei pela sua falta, concretamente, a partir da altura em que me começou a pesar, no tempo e nas energias, o facto de me ver forçado a recorrer aos écrans de vilas vizinhas para me divertir com certas películas que, em minha opinião, não requeriam nem mereciam uma ida propositada à capital. À medida que o pó e a sujidade foram dando sinais nas vitrinas e na fachada, em geral, fui dando conta que, afinal, até tinham sido muitas as terças-feiras com serões preenchidos com filmes de segunda e terceira linha, é certo, mas que nem por isso deixavam de proporcionar distracção e, em muitos casos, com o acréscimo de provocarem conversa. Tal como eram variadíssimos os grandes êxitos de bilheteira que ali houvera visto, aos fins-de-semana, sempre com a casa a deixar gente de fora. Fosse o que fosse, aquele cine-teatro era uma opção que se calou e agora parece-me que então compreendia que, para tanto, mais não necessitava que andar uma vintena de passos.
Porque chegaram os interiores àquele estado? Ele é verdade que nos últimos anos, especialmente às terças e quintas-feiras, as cadeiras estavam às moscas, a não ser num ou noutro caso de exemplares de um género em voga, eram vulgares as noites em que nem duas mãos cheias de pessoas se espalhavam na sala. Isto para nem lembrar aquelas consequências da nouvelle vague em que, pelo menos uma vez, eu e um outro amigo fomos os únicos presentes, a ponto de ele fumar no decurso da projecção sem ser detectado. Em contrapartida, os Sábados e Domingos, incluindo as matinés, esses continuavam cheios. Havia povo para isso. E nesse aspecto, se algum problema se colocava ele prendia-se mais com as escolhas apresentadas ao público do que a este propriamente dito. Aliás, tenho para mim que a actividade cinéfila, em si, era lucrativa. Mesmo descontando a selvajaria responsável pelos cortes e rombos nos estofos do balcão, em primeiro piso, no cômputo final o saldo era, certamente, positivo e, devo dizer, economicamente interessante.
A casa desabou devido a outros motivos, exteriores a ela. Foram as gestões ruinosas da Cooperativa Operária de Consumo que daquela era proprietária, a sucessão de anos ao sabor do vento foram os responsáveis pela incapacidade de manutenção verificada e, mais tarde, pela quase falência daquela associação, sonho de alguns operários dos tempos finais da primeira república. Foi por isso que não houve dinheiro para arranjar as instalações e ninguém se mostrou interessado em evitar o descalabro total. Mas sobre as razões de tais desnortes não me proponho falar aqui que essas acabam por ser motivos para outras guerras.
Para já, limito-me a acrescentar que o salão de cinema foi o capricho da última colectividade de cultura e recreio que se fundou no burgo a partir de uma cisão da banda da mais anosa daquelas associações. Por algum tempo foi objecto de exploração privada, pelo Júlio do café que o trouxe de arrendado. Por fim, a Academia vendeu-o à Cooperativa e assim ficou até à hora da morte.
Ao longo do tempo houve um público cinéfilo. Um dos meus tios paternos, por exemplo, teve por muitos e bons anos um lugar reservado numa das últimas filas do balcão. Mas também se formaram homens que gostavam de se dar ares da rebeldia de um Humphrie Bogart ou do semblante melancólico e apaixonado de um Richard Burton. O cinema era um local público onde os homens eram vistos com as suas mulheres. E eram muitos os que tratavam por tu os heróis da tela e sabiam de cor as películas em que entrara o Lex Barker ou o Gari Cooper. Várias foram as gerações que despontaram para a matiné de Domingo que era o dia da indumentária cuidada e até àqueles que têm a minha idade, muitos foram os que em comum cresceram com os moços que, nos intervalos, percorriam os corredores e os lugares com um tabuleiro ao peito, onde traziam os doces e os salgados, cujos papéis e cascas se estatelavam no soalho à laia de despojos da sessão. E se quiser ser justo, ali não vi apenas as diatribes dos bons e dos vilões dos western spagueti que até tiveram os seus heróis, como o Giulliano Gema que, fazendo de Django, foi salvo por uma moeda de um dólar, e nem me estou a referir a espectáculos de ilusionismo e de música que ali tiveram lugar. O Sérgio Godinho ali iniciou a sua torne sete anos de canções. Estou antes a rever a manifestação que o Tonho Testa e o Estreia barbeiro queriam fazer junto das bilheteiras para poderem assistir de pé a um filme considerado erótico, se não estou em erro, “A Piscina”. Ou as gargalhadas provocadas por algum aparte jocoso que, no escuro, por vezes se fazia ouvir a propósito de alguma cena.
Com efeito, para a rapaziada da minha convivência o cinema era um ponto de diversão e de encontro e se na meninice os costumes e os zeladores tudo faziam para que fossemos contidos e discretos nas brincadeiras que por lá praticávamos, ao longo da adolescência as rédeas quebraram-se abrupta e inesperadamente e fora das jaulas podemos dar largas a pinotes que em outras circunstâncias não teríamos feito. Coisas de rapazes, diziam então os mais velhos. Houve uma fase de entradas propositadamente tardias, para descermos as escadas da entrada com saltos em piso de madeira e também houve a moda de mastigar rebuçados de modo a que o barulho perturbasse alguns momentos de maior emoção e suspense.
Foi daí que derivou o prato predilecto das soirés de Sábado.
Como éramos muitos, entre rapazes e raparigas, conseguíamos quase preencher um dos lados da fila A do balcão, a primeira de todas que, pela separação de um muro baixo, se debruçava sobre a plateia, no piso inferior. Às páginas tantas alguém teve a ideia dos ovnis e é claro que a coisa pegou logo. A brincadeira consistia em colocar um colocar um rebuçado no parapeito de madeira que apelidávamos de pista de aterragem e com a força de quem dispara um bugalho, escolhido o momento apropriado que era aquele em que as pessoas estivessem mais concentradas naquilo que estavam a seguir, algum de nós dizia fogo e, em acto contínuo, voavam os projécteis na direcção de algum coro cabeludo que logo se virava para trás.
Era uma risada.
Alhos Vedros
2 de Março de 1996
quarta-feira, 18 de abril de 2007
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3 comentários:
Depois de encerrada com Sala de Cinema deu abrigo à lendária rádio Opção.
Em melhor português: depois de encerrada com Sala de Cinema, nos finais deos anos 80, esta Sala deu lugar à lendária Rádio Opção.
Luís Mourinha
Mais precisamente entre oitenta e seis e oitenta e sete, não foi?
A primeira grelha até teve programas de interesse e apesar de todo o amadorismo com que eram tecnicamente feitos -aquela mesa de mistura feita pelo Luís Paulo e o Fausto dos tempos daquela rádio que emitia na casa do primeiro e de que já falámos alhueres e de que me esquece agora o nome- foi uma pena que as pessoas não tivessem revelad a capacidade de levar o projecto por diante como sucedeu, por exemplo, com a Rádio Clube da Moita, naquela Vila. Apesar desta última igualmente já ter desaparecido, ainda há rádios locais que datam dessa época e tenho para mim que a Opção poderia muito bem ter sido uma delas. Tinha e sempre teria os recursos humanos e só a falta de engenho impossiblitou a tal visão para fazer o mesmo com os aspectos materiais, quer em termos logísticos e tecnológicos, quer financeiros. Enfim, não deixou de ser uma experiência bastante interessante e, no meu caso pessoal, instrutiva, pois ali aprendi técnicas e práticas que depois apliquei de um modo mais aprofundado num programa que realizei em conjunto com o Edgar Pedro e o Sérgio Saraiva, justamente no RC da Moita, entre Novembro de 1990 e Dezembro de 1991. O saudoso Lídio, por exemplo, em contracenando com o Luís Guerreiro e a São, encenou num dos programas uma peça de teatro radiofónico. Claro que esta expressão teatral é antiga e já teve até épocas áureas de ocupação do espaço radiofónico e portanto é ali comum. Mas não é vulgar que se faça teatro radiofónico como a peça de destaque de um determinado programa com uma agenda variada e generalista no âmbito das actividades culturais locais, como era o desiderato da nossa programação.
Mas lembro que tu fazias um programa de nome "Pão e Circo" que tanto pelas escolhas musicais que passavas como por aquilo que por lá dizias, se bem que a memória esteja já batida, mas, tanto quanto me recordo, era uma hora agradável de acompanhar e era dos programas que sintonizava quando estava em casa a trabalhar. Se não estou em erro, era ao começo da noite num dos dias do fim-de-semana, não era?
Esta experiência da blogosfera faz-me recordar esses tempos e actividades. Afinal, o propósito acaba por ser o mesmo e o gozo de ser sério a brincar também.
O que me dizes companheiro?
Luís Foch
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