O PEDIDO DE NAMORO
Não tenho dúvidas que a infância nos marca de forma indelével. Para o bem e para o mal, são situações que vivemos nessa idade mítica, o facto de termos sido felizes ou não, é isso que, muitas vezes, vem a determinar aquilo que vimos a ser e a conseguir em adultos, o nosso ânimo e forças e ainda a pertinácia ou a ausência dela, para atingirmos aquilo que queremos na e da vida. Não sou psicólogo nem, de qualquer forma, perito na matéria, mas penso assim por intuição e, na verdade, é ao longo desses anos que começamos a lapidar os tijolos mais fundos do nosso carácter. Quantos não são os casos em que as primeiras impressões recolhidas nesses dias nos impõem a massa com que cimentamos pontos de vista futuros?
Pois eu, do paizinho, guardo da meninice a recordação de uma imagem dúbia. Lembro-me bem do pai jovial e inundado de sentido de humor nas respostas que dava ao quotidiano, o pai que gostava de conversar com os filhos e de lhes ouvir as opiniões e de os ver afirmarem atitudes, nesse sentido, o pai liberal que nos acompanhava numa caminhada e nos deixava caminhar sozinhos e que eu, nas minhas fantasias de miúdo, gostava de vestir com a despreocupação rebelde dos períodos balneares. Mas também recordo o rosto bem demarcado pelas gelhas de alguém capaz de viver com pouco, muito pouco, e jamais olvidaria as expressões do homem autoritário, aquele que nunca abdicava da prerrogativa da última palavra e que agia como um guardião de algumas regras cujo incumprimento nos fazia correr o risco de punição que só por razões de justiça não era posta em prática. Esse era o pai dos fatos completos, co colete e da gravata que, aqui e ali, esperava por nós para nos julgar.
“-Sentença de Salomão…” –Dizia ele, com uma teatralidade que tinha tanto de sério como de boa disposição, para com isso destacar a importância das palavras e, simultaneamente, desdramatizar-lhes as consequências. E proferia a decisão e a opinião que podiam ou não trazer o castigo.
Era o pai que nos repreendia a indelicadeza, embora se limitasse a discutir as ideias connosco. Aquele que nos proibia a preguiça mas que nos deixava brincar. E ainda aquele que nos impunha horários e rituais a respeito dos quais desprezava por completo as nossas vontades.
Associada a isso está também a recordação que dele tenho como homem de palavra, quer na dimensão daquele que fala verdade e cumpre com o que diz, quer na pessoa que faz um uso predominante dessa ferramenta na sua relação com os outros. Quando me remeto para a infância, um quadro que reponho é o do paizinho, à mesa, comunicando-nos a sua leitura de certos acontecimentos, com aquele ar de quem fala de descobertas científicas, ou então vejo-o sentado, dada a regularidade do facto, melhor seria recostado, no seu cadeirão pessoal, espécie de mesa de colóquio da sala de estar, onde a família partilhava uma boa parte dos momentos de lazer.
A verdade é que havia a obrigação de todos estarmos em casa por volta das sete da tarde, apesar do jantar se realizar apenas uma hora depois. Era a ocasião que o paizinho aproveitava para indagar sobre o dia escolar e civil dos filhos e no que restava desse noticiário, imprescindivelmente diário, era também o tempo apropriado para ele nos dar lições em torno dos mais variados problemas, com isso, em parte, esperando fazer de nós indivíduos responsáveis e sérios. Às vezes, afundava-se no cadeirão e, como se estivesse de olhos fechados, discursava até que a mãe, ora aproveitando uma pausa, ora recordando o adiantado da hora, nos fazia sentir a necessidade de nos sentarmos para a refeição.
O paizinho era, para mim, esse misto de amigo e juiz, essa ambivalência entre o professor e o polícia.
Hei-de guardar para sempre o episódio da concessão da autorização para o namoro da minha irmã mais velha e estou certo que ele bem ilustra tudo quanto escrevi anteriormente.
Depois de ver bem sucedida a sondagem prévia junto da mãe, teve ela a agradável surpresa de ouvir o pai convidar o rapaz para jantar, no imediato à intenção de com ele falarem, tendo em vista o seu beneplácito à união que ali pretendiam iniciar.
E aquele que viria a ser meu cunhado lá apareceu, numa noite de Sábado, primeiro para jantar com a família e depois para se deslocar ao escritório, onde deveria ter a entrevista do consentimento.
É claro que não seria isso um motivo para alterações nos hábitos familiares, antes pelo contrário e, como seria de esperar, também o convidado ficou sujeito à pontualidade das sete e a presenciar a ronda biográfica. No entanto ele era jovem e encarou isso com espírito desportivo e disposição de pescador. Mas o que ele não contava é que o paizinho tivesse outros planos.
Acabou ele por aproveitar aquele momento para expor aquilo que achava deverem ser os papéis dos homens e das mulheres no até e pós casamento, no que deve ter elaborado uma palestra toda ela feita de minúcias analíticas e exemplificativas.
Bem, nós estranhamos que, naquela tarde, o interrogatório tivesse sido tão rápido. Mas quando passada mais de uma hora a mãe nos fez um sinal discreto para que nos dirigíssemos para a mesa, já então tínhamos compreendido que, afinal, a vontade inicial era proporcionar ao candidato uma daquelas aulas de preparação para a vida autónoma.
É claro que apenas a visita ficou na sala, mãos sobre as pernas, escutando atentamente a prédica de quem, olhos postos no tecto, nem dera conta da debandada geral.
Eu não sei o que sentiu quando o paizinho deu por finda a oratória, mas tenho a certeza que o espanto lhe deve ter obliterado o alívio quando, por entre o aperto de mão, lhe ouviu a exclamação final:
“-É pá!” –Começou o meu pai circunspectando com olhos franzidos.”-Não me diga que você foi o único que ficou a ouvir-me…” –E o pretendente deve ter engolido em seco com a brevidade de uma pausa. “-Você veio cá para pedir a mão da minha filha?” –Perguntou-lhe enquanto se erguia. E não esperou pela resposta. “-Pois fique sabendo que tem a minha permissão.” –E estendeu-lhe de imediato a mão direita.
Portel, 20 de Abril de 1998
sexta-feira, 20 de abril de 2007
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