sábado, 26 de julho de 2008

RECORDAR ESTÓRIAS DA GAVETA

O amor tece-se de matéria sensível e a sua génese veste-se de universalidade. Não lhe compreende a razão, nem o verdadeiro sentir nem a linguagem da sua manifestação. Na relação de presença ou de privação com o objecto amado, escrevem-no com sublimação os caminhos da poesia.

A sucessão do tempo e as lições da vida esculpiram em Ana ponderação e reflexividade compreendendo e sedimentando na consciência a finitude e a efemeridade. O universo das paixões eleva o ser humano a um estágio de felicidade instancial inimitável, mas as decepções, o sofrimento e a esfera da necessidade apuram num espírito maduro a temperança, a lucidez e a responsabilidade.

Porém, a solidão não poderia ser eternamente uma boa conselheira. E mais que a partilha e o diálogo dos corpos Ana necessitava do afago da alma, humanizando o curso dos dias no paradigma da presença de alguém, dar e receber os receios e as esperanças que moldam na temporalidade o que cada um vai sendo (ou não sendo) em si. A mudança apenas triunfa num desafio resolvido no interior de nós.

Empreendedora, Ana decidiu melhorar o seu grau de sociabilização. Transformou os seus laços profissionais com intimismo e relançou com dinamismo a arqueologia da amizade, tantas vezes olvidada pela escolha de um só caminho.

E no labirinto dos jardins mundanos chegou o momento de conhecer Carlos !
Suspensos no ar, gemiam os últimos murmúrios invernais. A natureza renovava-se e irrompia numa profusão de cores. O sol da manhã despertava a vontade de vencer alentando o corpo e alumiando a alma. Ana viajava até ao Cercal, para a discussão duma proposta de decoração das novas instalações de uma pequena empresa de produtos químicos localizada num parque industrial daquela vila alentejana.

Carlos presidia a empresa e foi o seu interlocutor principal no decurso daquela reunião. De postura sóbria e o rosto vincado pela agrura dos dias, as palavras soltavam-se exigentes e pragmáticas no verbo do seu discurso. De humor sereno e trato formal, o olhar desenhado em castanho escuro transmitia todavia uma ambiência de tristeza.

Enérgica e feminina, maternal e decidida, Ana causou em Carlos um sentido híbrido de competência e de graça e os números (a vil matéria), a linguagem do negócio, tornaram-se supérfluos no desiderato da conversação.

Por vezes a voz do silêncio, a dor da ausência, sopram no labirinto do coração. É deslumbrante o mundo feminino quando disposto a amar. Tudo nele é vibração, intuição, paixão e coragem. Mesmo refreado pelo merecimento do desconhecido e pela reminiscência dum amor tão presente nos frutos colhidos daquela que fora a mais bela árvore do jardim da sua existência.
Ana fomentou com discrição e intensidade a nova relação e compreendera sensata e progressivamente em Carlos um tom de amargura. Ele rompera há poucos meses com Cristina, em nome da arte por “quem” esta se confessara apaixonada. Os encontros continuamente frequentes culminaram na cumplicidade do corpo e da alma. Ana sabia que não fruía uma paixão cega e estival e apesar de alguma rigidez de diálogo e do tempo dedicado por ele aos filhos Luísa e Francisco, ela gostava de Carlos. A sua serenidade, a sua coerência e a sua resignação dissipavam a parca espontaneidade e a aridez dos sorrisos mais profundos. Quanto a ele cativara-se de Ana por aquilo que ela era, e o eco do seu corpo e o rio do seu olhar aprisionaram-no para sempre.

Invocando a consciência de si, Ana reconhecia que nele encontrara a admiração por si e o conforto da maturidade. Não se apresse a vida porque não se extingue o tempo. A escola da existência ensina-nos que todo o ser humano adora ser apreciado e que as críticas recorrentes desgastam e consomem a essência do amor.

A harmonia inebriava a relação e nem a pouca apetência do seu par pelas actividades culturais, tão prezadas para Ana, induzia antagonismos ou adversidade. Ela aprendeu a cultivar as semelhanças e a admitir as diferenças, e a juventude e o apego à vida dos seus filhos eliminaram daquela existência o vocábulo da vacuidade. Percebera porque a tenra idade nos traz o amor como um capricho do destino. Nos dois seres que habitam a equação do amor ela já não era deterministicamente a incógnita.

Cumpriram-se mais alguns ciclos da roda do universo e a Primavera terna e carinhosa que aproximara Ana do amor amadurecera na história da sua existência. O rio onde entrara fluía intenso e cadenciado, e mesmo os escolhos que nele transitavam não lhe privavam o leito de tranquilidade. De Joaquim, os meros sinais de aparência, decorrentes das visitas periódicas aos filhos ou de aniversários de cariz ainda familiar; cumulativamente, os rumores locais dum aburguesar contínuo, enfeudado na rotina entre os correios, as sedes dos clubes e a boutique de Sofia.

Renovou-se sete vezes o hino à vida quando a serenidade daquela existência foi abalada pela alteridade do mundo. Vítima súbita de patologia cardio-vascular Joaquim agonizava num leito hospitalar, onde esgotaria os seus últimos momentos nesta terra.

A sombra da perda desceu sobre Ana, e olhando o espelho do quarto onde Carlos lhe conseguira amordaçar a solidão, chorou lágrimas profundas de mágoa e de saudade.

Que fracção de si, lhe subtraíra o amor ?

Flávio Meireles

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