quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A FÁBULA DO AMOR (2)

O amor tece-se de matéria sensível e a sua génese veste-se de universalidade. Não lhe compreende a razão, nem o verdadeiro sentir nem a linguagem da sua manifestação. Na relação de presença ou de privação com o objecto amado, escrevem-no com sublimação os caminhos da poesia.

A sucessão do tempo e as lições da vida esculpiram em Ana ponderação e reflexividade compreendendo e sedimentando na consciência a finitude e a efemeridade. O universo das paixões eleva o ser humano a um estágio de felicidade instancial inimitável, mas as decepções, o sofrimento e a esfera da necessidade apuram num espírito maduro a temperança, a lucidez e a responsabilidade.

Porém, a solidão não poderia ser eternamente uma boa conselheira. E mais que a partilha e o diálogo dos corpos Ana necessitava do afago da alma, humanizando o curso dos dias no paradigma da presença de alguém, dar e receber os receios e as esperanças que moldam na temporalidade o que cada um vai sendo (ou não sendo) em si. A mudança apenas triunfa num desafio resolvido no interior de nós.

Empreendedora, Ana decidiu melhorar o seu grau de sociabilização. Transformou os seus laços profissionais com intimismo e relançou com dinamismo a arqueologia da amizade, tantas vezes olvidada pela escolha de um só caminho.

E no labirinto dos jardins mundanos chegou o momento de conhecer Carlos !
Suspensos no ar, gemiam os últimos murmúrios invernais. A natureza renovava-se e irrompia numa profusão de cores. O sol da manhã despertava a vontade de vencer alentando o corpo e alumiando a alma. Ana viajava até ao Cercal, para a discussão duma proposta de decoração das novas instalações de uma pequena empresa de produtos químicos localizada num parque industrial daquela vila alentejana.

Carlos presidia a empresa e foi o seu interlocutor principal no decurso daquela reunião. De postura sóbria e o rosto vincado pela agrura dos dias, as palavras soltavam-se exigentes e pragmáticas no verbo do seu discurso. De humor sereno e trato formal, o olhar desenhado em castanho escuro transmitia todavia uma ambiência de tristeza.

Enérgica e feminina, maternal e decidida, Ana causou em Carlos um sentido híbrido de competência e de graça e os números (a vil matéria), a linguagem do negócio, tornaram-se supérfluos no desiderato da conversação.

Por vezes a voz do silêncio, a dor da ausência, sopram no labirinto do coração. É deslumbrante o mundo feminino quando disposto a amar. Tudo nele é vibração, intuição, paixão e coragem. Mesmo refreado pelo merecimento do desconhecido e pela reminiscência dum amor tão presente nos frutos colhidos daquela que fora a mais bela árvore do jardim da sua existência.
Ana fomentou com discrição e intensidade a nova relação e compreendera sensata e progressivamente em Carlos um tom de amargura. Ele rompera há poucos meses com Cristina, em nome da arte por “quem” esta se confessara apaixonada. Os encontros continuamente frequentes culminaram na cumplicidade do corpo e da alma. Ana sabia que não fruía uma paixão cega e estival e apesar de alguma rigidez de diálogo e do tempo dedicado por ele aos filhos Luísa e Francisco, ela gostava de Carlos. A sua serenidade, a sua coerência e a sua resignação dissipavam a parca espontaneidade e a aridez dos sorrisos mais profundos. Quanto a ele cativara-se de Ana por aquilo que ela era, e o eco do seu corpo e o rio do seu olhar aprisionaram-no para sempre.

Invocando a consciência de si, Ana reconhecia que nele encontrara a admiração por si e o conforto da maturidade. Não se apresse a vida porque não se extingue o tempo. A escola da existência ensina-nos que todo o ser humano adora ser apreciado e que as críticas recorrentes desgastam e consomem a essência do amor.

A harmonia inebriava a relação e nem a pouca apetência do seu par pelas actividades culturais, tão prezadas para Ana, induzia antagonismos ou adversidade. Ela aprendeu a cultivar as semelhanças e a admitir as diferenças, e a juventude e o apego à vida dos seus filhos eliminaram daquela existência o vocábulo da vacuidade. Percebera porque a tenra idade nos traz o amor como um capricho do destino. Nos dois seres que habitam a equação do amor ela já não era deterministicamente a incógnita.

Cumpriram-se mais alguns ciclos da roda do universo e a Primavera terna e carinhosa que aproximara Ana do amor amadurecera na história da sua existência. O rio onde entrara fluía intenso e cadenciado, e mesmo os escolhos que nele transitavam não lhe privavam o leito de tranquilidade. De Joaquim, os meros sinais de aparência, decorrentes das visitas periódicas aos filhos ou de aniversários de cariz ainda familiar; cumulativamente, os rumores locais dum aburguesar contínuo, enfeudado na rotina entre os correios, as sedes dos clubes e a boutique de Sofia.

Renovou-se sete vezes o hino à vida quando a serenidade daquela existência foi abalada pela alteridade do mundo. Vítima súbita de patologia cardio-vascular Joaquim agonizava num leito hospitalar, onde esgotaria os seus últimos momentos nesta terra.

A sombra da perda desceu sobre Ana, e olhando o espelho do quarto onde Carlos lhe conseguira amordaçar a solidão, chorou lágrimas profundas de mágoa e de saudade.

Que fracção de si, lhe subtraíra o amor ?

Flávio Meireles

10 comentários:

philos disse...

Flávio:

É impar a segunda parte da sua estória, mas não gostei do final para Joaquim, acho que ele merecia melhor sorte! Talvez ainda lhe faltasse muitas "searas", sei lá.
Mil perdões pela sinceridade.

Flávio M. disse...

Philos,

talvez o Fado, ou talvez Ana lhe subtraísse o amor...
Não há sinceridade na dúvida !

Flávio M.

@--}--- de £ótus disse...

Flávio,

Como eu gosto, da forma exímia, como esgrimas as palavras.
Os meus olhos deleitam-se!...
"Bebo-as" devagarinho, saboreando-as, como se de um precioso néctar se tratasse.

Que dizer, deste segundo capítulo, senão, que está fantástico!...
Grande volte face!
Quando a vida, para Ana, no capítulo anterior, parecia vazia e sem sentido. Quando a solidão, a traição, o sentimento de perda e desilusão a deixaram quase inanimada. Ela que aparece de novo forte, renovada, sem medos, vivendo um novo amor, agora mais maduro e mais consciente.

Muitas vezes, vemos o Amor, ser-nos subtraído, mas se não baixarmos os braços, se formos empreendedores, quiçá, nos volte a ser "oferecido", o que um dia nos foi tirado.

Quanto ao Joaquim, foi uma pena, mas a vida é isso mesmo, um manancial de ganhos e perdas. De alegrias e tristezas. De chegadas e de partidas. De luz e de sombras. De vida e de morte.
Por muito que nos doa... somos finitos e, contra isso, nada há a fazer.

Beijos
APG

Unknown disse...

Bonita história que ilustra que a vida é uma lição contínua e que ninguém merece exclusivamente o nosso amor.
Thanks

Eduardo P.

Flávio M. disse...

APG,

são palavras escritas com o fluído da existência e com a intuição profética de que mesmo na tristeza da derrota, mesmo na dor da traição podemos encontrar um sentido para a vida, qual "fénix" renascida que nos eleva a vontade de vencer e nos redesenha o quadro do mundo na policromia da felicidade. Reaprendendo na consciência de si, o sempiterno lugar comum de que nunca é tarde para amar...

Flávio M.

Unknown disse...

Caramba !

Encontrei a 1ª parte da história (que desconhecia) e fico com a sensação que alguém deste universo de "bloggers" parece ter vivido esta história....

Fernando M.

Flávio M. disse...

Talvez Fernando ainda a esteja a viver e utilize o enfabulamento para mitigar a dor e ter a coragem de transformar a existência tantas vezes ingrata. Por vezes extingue-se a luz do amor no objecto em que colocamos o ser(mos), mas ainda creio que o universo tudo devolve e que a coerência e a justiça serão a alma do mundo.
Flávio M.

Unknown disse...

Bem,
o que não percebo é o desaparecimento súbito do personagem Joaquim nem porque é que Ana o parecia ainda amar...
Será que não seria capaz de voltar a amar um outro homem como ao seu ex-companheiro (mesmo traida, mesmo ultrajada...)?
Cumprimentos

Fernando

Flávio M. disse...

Talvez...
Ainda falta um úlimo capítulo onde talvez encontre as respostas. Todavia direi que o desaparecimento de Joaquim marca uma ruptura com uma existência "vegetativa" e o lugar e função da perda e da renovação. Quanto ao amor de Ana, como poderá alguém esquecer quem lhe entregou as primeiras palavras do seu coração, a suavidade das primeiras carícias ou a imortalidade dos frutos da mais completa paixão ?~
Flávio M.

Unknown disse...

Seria bom mas lá que esquece, esquece.
Esperemos pelo fim.
Fernando