domingo, 10 de junho de 2007

Intimidades

UM BRINDE COM CHAMPANHE
Para a
Elizabete Gonçalves,
um pela sugestão, dois pela amizade.
From the deep of the heart.


A mãe sempre disse que eu era um cabeça na Lua. Não que alguma vez tenha sido alguém que passa pelos dias sem lhes observar as colorações ou, que participa no quotidiano sem lhe sentir o pulsar. Nada disso, desde muito cedo até que eu gosto de indagar as ondas que me envolvem e aqui e acolá se ficam pelo humedecer do rosto. É, em mim, precoce, o habito de cogitar sobre as diferenças entre os sapatos que amparam os múltiplos caminhares deste mundo e os mistérios das estrelas e da física terrestre de há muito que me fascinam e deixam cheio de vontade de perguntar. Aliás, de que outra forma eu poderia ter vindo a fazer-me escritor sem tais recordações, quando sabemos, a expressão da escrita é, em parte, igualmente um trabalho de memória? Mas a santa senhora tinha razão, eu desempenhava aquelas atenções com a negligência de outras e sem ser um gaiato virado para o nariz e o umbigo, eu vivia esquecido de uma série de pequenos eventos e coisas que interessavam aos outros. Isso notava-se e levava-os a referirem-se-me como uma pessoa que facilmente se deixava navegar pelos circuitos que o imaginário cria.
A verdade é que desde a mais tenra idade me vi forçado a conviver com esse jeito pouco cómodo de abandonar, no olvido de brincadeiras, aquilo que deveria levar pela mão e, como deveis calcular, a sofreras consequências que isso me trazia em termos de punições e das dores de alma que amiúde vinham associadas às perdas. Dos óculos que ficavam nos bancos de jardim ou atrás das pedras que demarcavam as balizas de jogos que nos faziam sentir Eusébios e Péles, aos chapéus de chuva que ainda hoje, anualmente, desaparecem com as intermitências das primeiras chuvas, ele houve trabalhos de casa por cumprir, recados trocados com desencontros e bagagens extraviadas e até correrias atrás de carreiras que levavam a mala esquecida no banco em que tinha travado uma converseta de se lhe tirar o chapéu, se não, tão só, por deixar que os olhos pousassem nas sucessões de imagens no caminho para a escola. Hoje é com um sorriso que me recordo das aflições que me invadiam quando, uma boa mão cheia de ocasiões, logo no hall do instituto superior, fui recebido pela verificação de ter que prestar provas de exame daí a um par de horas.
Qualquer um de vós tomaria por incómodos estes rastos de boca aberta e mãos à cabeça e o mesmo se passa comigo. Compreensivelmente, muito teria preferido que a maioria dos casos não o tivessem sido. O problema é que sempre tive em mãos algo que me ocupava o cérebro e quase apenas por intuição, Sol bocejante, percebi a falta de tempo para me concentrar nos propósitos de obviar os aspectos mais desastrosos da minha maneira de ser. E dou graças a Deus por não ter sido muito difícil a aprendizagem da coexistência com essas pedras caídas sobre o pé.
No entanto, com este meu olhar flutuante, nem só em espinhos me espicacei. A vida é assim mesmo e a lei dos equilíbrios, só por si, encarregar-se-ia de trazer a fragrância das compensações e rosas houve que bem perfumosas me foram polvilhadas sobre o contentamento.
Um dos prémios para a minha inocência aconteceu-me num jantar do staff e convidados de um festival de cinema, em Tróia, já lá vão uma boa dezena de anos. Aproveitei eu e a Luísa a folga daquele Sábado para nos entretermos com películas que sabíamos não virem a passar nos circuitos comerciais e outras que, ali, teríamos oportunidade de ver em género de estreia. Ela convidou uma amiga de infância e lá fomos os três com o entusiasmo de quem vai satisfazer curiosidades cinéfilas. Telefones para cá e para lá e a minha esposa combinou encontro com a Léninha e o Rui Guedes que ali permanecia para efectuar a cobertura jornalística do evento. Amigos de universidade e cumplicidades de juventude, logo o Rui tratou de nos convidar para jantar, para o que se dispôs, de imediato, a obter-nos os ingressos necessários para lhes fazermos companhia no salão onde todo o pessoal participante se alimentava. Lamentavelmente, na opinião do meu amigo, só lhe foi possível requisitar dois convites, embora eu tenha imediatamente manifestado a disponibilidade para pagar a minha despesa, o que fiz com toda a naturalidade e é claro que algo diverso não seria de esperar. Chegada a hora do manduco e sabendo que me deveria dirigir para a mesa quatro, depois de ver os meus convivas entrarem por uma portinhola de fundos, lá fui eu em demanda do sítio de pagamento. Na antecâmara do espaço gastronómico, não dei conta de nada que se assemelhasse a um local de cobrança, mas vi uma fila de pessoas, à entrada, na qual me coloquei. Pouco depois estava em frente dos meus companheiros, não sem antes ter sido salamalequeado pelos empregados e conduzido à mesa devida pela cordialidade e educação de um deles. Sentei-me e jantei, num convívio feito de sétima arte e recuerdos, bem como as opiniões avulsas que, nestas ocasiões, sempre acontecem a respeito dos assuntos que fazem as gordas dos media. Quando o repasto foi dado por findo, chamei um empregado e perguntei-lhe quanto estava a dever, uma vez que não trazia qualquer daquelas tarjetas de passe. E o outro, com um sorriso que não sei se de gozo se de complacência, disse-me com bons modos que eu estava ali como convidado do festival pelo que nada teria que desembolsar.
Mas tenho para mim que o pódium está ocupado por uma certa garrafa de champanhe.
Tudo começou com uma das minhas desgraças, quando, já perto da Ericeira onde iríamos passar um fim-de-semana em casa da Teresa e do João, dei conta de não trazer comigo as chaves do carro que deixara perto da residência deles, em Campo de Ourique. A memória dizia-me que aquelas só podiam ter ficado na porta do veículo. Por entre o meu susto de pensar no dinheiro que iria perder se me furtassem o automóvel e a opinião do João sobre a reduzida probabilidade de ali passar alguém que simultaneamente reparasse no meu esquecimento e tivesse intenção de me causar dano, lá regressamos a cem à hora à capital e eu, bufando, no viaduto Duarte Pacheco, deixei escapar a promessa de brindarmos com champanhe se o objecto fosse recuperado a contento. E o suspiro de alívio nem se fez esperar. Um pedreiro de uma obra fronteira tinha visto tudo e guardado o abre-te sésamo. O reatar do lazer foi uma rodagem de gargalhadas e na estância balnear, no supermercado em que fomos comprar o vinho para o jantar, dei conta da venda do prometido vinho francês. A palavra tinha sido dada e eu apresentei a garrafa à menina da caixa que digitou o preço enquanto eu tirei as notas que tinha no bolso e eram, uma de cinco mil escudos, uma de mil e outra de quinhentos. Mal tive tempo de lhes atirar o rabo do olho, pois a rapariga, com maus modos e ar de desdém, sacou-me uma de imediato e, à velocidade do som, deu-me cento e cinquenta escudos em moedas como troco. Guardei o dinheiro e saí dali sem me certificar se a conta estava certa ou não.
Foi quando eu me ofereci para pagar os cafés, após o jantar e o primeiro brinde comemorativo que eu verifiquei que mantinha comigo as duas notas mais altas.

Alhos Vedros, 29 de Abril de 1998

1 comentário:

Anónimo disse...

É sempre um gosto ler as suas histórias e a maneira como as descreve.