Há alguns anos, há já bastantes anos atrás… o tempo passa demasiado depressa, nem nos apercebemos da rapidez com que tudo se passa. Eu e um companheiro d’armas resolvemos ir jantar um Bife à Portugália.
Saímos da Base, fomos na vedeta até à doca da Marinha em Lisboa. Como era cedo, resolvemos ir a pé. Subimos a Rua da Prata, parámos na Ginjinha do Rossio para a tradicional ginjinha. Depois entre muita conversa, sobre a tropa, sobre o futuro, sobre o que a vida nos reservava, começamos a subir a Almirante Reis.
Era um fim de dia de Outubro, o céu apresentava aquela cor pardacenta e triste de um fim de dia de Outono numa grande cidade. Pessoas passavam por nós apressadas, desejosas de apanhar o autocarro, ou o metro para regressarem a casa. Todas pareciam cansadas e tristes tal como o dia.
Acompanhando a nossa conversa, íamos apreciando as promoções das lojas dos indianos, tudo se vendia, tudo se comprava a preços mais do que razoáveis. Questionávamo-nos de qual seria a duração de todos aqueles produtos, com valores tão atraentes devidamente apresentados em pequenos cartazes amarelos, ou laranja fluorescente.
Concluímos rapidamente que seriam coisas de duração efémera. Mas não seriam estes os produtos correctos para a vida que se leva? Uma vida onde tudo se torna efémero, onde a longevidade seja daquilo que for não passa de uma leve miragem ou utopia. Investir pouco, utilizar muito, e deitar fora sem olhar para traz.
Já ninguém pensa em investir seja no que for, para uma vinda inteira. Até nos relacionamentos, ninguém pensa num amor para uma vida inteira: “Olha vou casar! Gostamos um do outro, estamos bem juntos, vamos casar… estamos fartos de andar por aí. Depois se não der certo logo se vê!”
Foi no meio desta conversa que chegamos á Igreja dos Anjos. O cenário parecia ainda mais triste do que habitualmente, talvez porque aquela hora as nuvens que anunciavam chuva, ainda tornavam a sensação de precariedade maior. Talvez porque o número de indigentes, ou desafortunados, por opção de vida ou por nunca terem sabido lutar por ela, eram em número maior que habitual.
Mais uma vez aquela sensação de vidas efémeras nos invadiu. As vidas descartáveis, o viver 24 horas pela sopa do dia. Causou-nos uma sensação desagradável, que quase nos desviou do nosso objectivo ali mesmo em frente, do outro lado da rua. A Portugália, esse ícone do petisco e da euforia momentânea, tão lisboeta, tão lusa.
Ficámos mais um pouco, ali junto á entrada da igreja como que a pedir desculpa a Deus por estarmos a planear um banquete, junto daqueles que aguardavam a sopa dos pobres.
Um vulto pequeno e encurvado, de roupas escuras que não destoariam nem por um momento num cenário da revolução industrial, dirigiu-se a nós. O que ela me disse, guardarei para sempre… mas recordo as suas palavras para o meu companheiro d’armas:
“- Boa noite Diogo! Não estejas preocupado com ela.
- Desculpe, mas eu conheço-a? Conhece-me de onde?
- Ai Diogo, que interessa de onde ou de quando eu te conheço! Que interessa se tu não te lembras! Se te dissesse, ainda me julgavas mais louca do que me julgas neste momento.
- Eu não penso que seja louca, apenas estranhei que soubesse o meu nome pois não me recordo de alguma vez a ter visto.
- Não te preocupes com isso. Olha aqui á porta da Casa de Deus, e com Ele como testemunha, vou-te revelar umas coisas…
- Desculpe mas não percebo!
- Estavas agora mesmo, quando cheguei junto a ti, a pensar na Lídia…
- Como é que você sabe? Conhece a Lídia?
- Isso não interessa! Ouve o que eu te digo.
Olhando-o nos olhos, de uma forma meio translúcida, começou a falar:
- A Lídia de que tu tanto gostas, não é a mulher do teu futuro. Hoje julgas que sem ela a tua vida não tem sentido. Mas quando faltar uma semana para o vosso casamento, com a casa pronta e a boda preparada, ela vai dizer que não te quer mais e tudo se vai desfazer…
- Desculpe lá, eu não a quero ofender, você tem idade para ser minha avó e eu não lhe quero faltar ao respeito. Mas quem é você, para vir agora aqui dizer-me todas essas coisas?
- Olha filho! Tenho idade para ser mais que tua avó, quem eu sou também não interessa, mas ouve até ao fim. Vais andar seis meses, depois da data do casamento falhado, a sentir-te mais miserável do que pensas que eu sou. Ao sétimo mês vais a um baile em Moscavide, lá vais conhecer a Ana. Ela sim, será a mulher da tua vida, passará um ano até te casares com ela, mas no dia do teu casamento, um dos dias mais felizes da tua vida vais-te lembrar da Velha dos Anjos e da bênção que agora te dou: – Que Deus abençoe a tua vida meu filho!!!”
Com estas palavras, a velha afastou-se… deixou-nos em silêncio. A noite já tomara conta da cidade e as primeiras gotas de chuva começaram a cair.
Dirigimo-nos para a Portugália, sentamo-nos ao balcão, pedimos os nossos bifes e uma caneca para cada um.
Comemos em silêncio. Não sei porque as palavras daquela velha afectaram tanto o Diogo, mas, aquele jantar já não teve o sabor que esperávamos.
É engraçado, lembro-me agora que foi o último Bife á Portugália que comi.
Quando terminámos, saímos por essas ruas de Lisboa… debaixo de uma chuva miudinha, que não molhava militares. Vagueámos não sei por que ruas, partilhando um maço de Português Suave dos amarelos. Andámos sem destino até á meia-noite, hora de apanhar a vedeta de regresso à Base.
O silêncio foi total durante essa noite, e sobre este assunto nunca mais falámos.
Durante os seis meses seguintes, em que continuamos a prestar serviço militar juntos, nunca mais dissemos palavra sobre este assunto.
Talvez três anos mais tarde, através de um outro camarada d’armas, tive notícias do Diogo. Tinha casado e estava à espera de um filhote.
Dei o meu número de telefone a esse meu camarada para que o desse ao Diogo. Dias mais tarde o Diogo telefonou-me, queria falar comigo logo que possível. Como eu andava a estudar á noite no ISEL, combinámos encontrar-nos no Portal de Chelas, pois como ele morava em Moscavide ficava perto para os dois.
- Queria falar contigo sobre a Velha dos Anjos!
Foi assim que o Diogo começou a nossa conversa nessa noite em Chelas.
- Que queres falar sobre ela? Já foi há tanto tempo, que nem me lembro muito bem do que ela disse.
- Pois, mas eu lembro-me bem de todas as palavras. Lembro-me de tudo e de como tudo bateu certo.
O Diogo, parou por momentos. Acendeu um cigarro…
- Ainda fumas Português dos amarelos? Eu mudei para o Gigante!
Fez mais uma pausa, olhou para mim mas através de mim. Como se através de mim visse para além do tempo, e recuasse até aquela noite na Igreja dos Anjos.
- Naquela noite, a velha falou-me da Lídia. Para eu não me preocupar com ela pois não seria a mulher da minha vida. Coisa absurda! Eu namorava a Lídia há seis anos, era a melhor coisa que eu tinha na minha vida… nunca tínhamos tido uma discussão. Tínhamos gostos semelhantes, como sabes o meu pai tinha-me oferecido o apartamento para que pudéssemos casar quando eu saísse da tropa.
- Eu lembro-me de tudo isso, lembro-me até de falarmos sobre os electrodomésticos nessa noite quando subíamos a Almirante Reis.
- Então foi assim, quando saí da tropa fui trabalhar com o meu pai para a metalúrgica, acabei de mobilar a casa. Tentei não pensar mais no que a velha me disse. Marcamos casamento para o segundo fim-de-semana de Setembro, marcamos o Copo-D’água para um restaurante muito bom ali da zona. Tínhamos cento e sessenta convidados.
Mais uma pausa, pediu mais uma ginja. Velhos hábitos da tropa, e continuou:
- Faltava uma semana para o casamento, ela foi com a irmã fazer o ensaio do penteado, tudo a correr bem. Eu já nem me lembrava da cena dos Anjos… mas nesse dia depois de voltar da cabeleireira, ela disse-me para irmos dar uma volta. Fomos para os lados do Guincho. Foi ali numa esplanada com o mar como cenário que ela me disse:
“- Diogo, custa-me muito o que te vou dizer… mas tenho de o fazer! Não vou casar contigo! Sou muito nova, tenho muito para viver e quero fazê-lo livre. Não me vou prender num casamento, e deixar de viver a minha vida. Gosto muito de ti, custa-me fazer-te sofrer, mas é melhor assim.”
- Então ela levantou-se e foi embora, fiquei a olhar o mar… incrédulo e sem reacção. Não sei se ela foi para casa de transportes públicos ou se já tinha alguém que a levasse. Mas isso também não importava, sentia-me perdido… lembrei-me de repente das palavras da velha, e tive uma vontade louca de matar a velha.
- Isso foi coincidência.
- Se calhar. Mas depois, fui-me abaixo. Foi uma confusão incrível, desmarcar o restaurante, informar toda a gente que o casamento já não se realizava… foi a confusão total. O ter de aturar os meus pais, o massacre psicológico que eles me fizeram como se já não bastasse tudo o que eu sentia, e como me sentia. A sorte foi o meu pai ter umas obras longe e eu fui para lá.
Passei uma vida desgraçada, todos os dias copos nem sei como conseguia trabalhar, andava sempre com os vapores. Cheguei a ir de propósito à Igreja dos Anjos ver se encontrava velha. A minha vida estava uma merda!
- Para que querias encontrar a velha? – Perguntei-lhe.
- Não sei companheiro! Talvez pensasse que se a encontrasse, ela conseguisse que tudo voltasse a ser como era. Talvez a Lídia voltasse e pudesse voltar a ter a minha vida como era.
- Mas sabes que isso não era possível, muita coisa já se tinha passado para que pudessem retomar a vida exactamente como tu te lembravas.
- Eu sei! Mas a parte mais interessante vem depois. Por altura do Carnaval, um amigo levou-me a um baile em Moscavide. Aquilo era uma treta, baile mesmo da tanga… meti-me nas “bombas” (nome que usávamos na tropa para a cerveja com bagaço). Não me lembro muito bem de como as coisas se passaram, mas acho que o tipo que foi comigo engatou uma miúda e foi embora, deixou-me perdido de bêbedo no baile.
- Ficaste a ‘navegar por instrumentos’, nunca aguentaste muita bebida, isso já é normal…
- Mas ouve o resto! Houve uma miúda que me viu ali em mau estado e me levou a casa, não sei se fui eu que lhe disse onde vivia, ou se ela o soube de outra maneira. Também nunca lhe perguntei.
Passados uns dias, um domingo depois de almoço, tocaram á campainha do meu apartamento. Eu tinha-me mudado para lá, pois já não aguentava os ‘bitaques’ dos meus pais. Era essa miúda do baile, tinha ficado preocupada comigo e vinha saber como eu estava.
- Foi então a continuação da profecia da velha. – Disse-lhe sorrindo.
- Ouve, ouve! Quando lhe perguntei o nome e me disse chamar-se Ana… tive vontade de correr com ela do apartamento, mas ela não tinha culpa de nada.
Acabei por ir almoçar com ela, revelou-se uma miúda ‘à maneira’! Continuámos a sair, a minha vida mudou. Montei uma firma minha, casei com ela numa cerimónia muito simples e estamos muito felizes. Dentro de quatro meses nasce o nosso filho.
- Eh pá! Diogo fico contente de saber que tudo te está a correr bem. Tu mereces!
- Mas não era por isto só que eu queria falar contigo, é que fiquei preocupado com o que a Velha dos Anjos te disse, eu não me lembro do que foi ela te disse… tinha ficado meio aparvalhado com o que me disse a mim, não me lembro de mais nada. E queria saber como está a tua vida?
- Olha, casei as coisas estão a andar. Estou feliz, bastante feliz!
- Casaste com aquela miúda irmã do MMA?
- Sim, casei. Eu disse-te que era amor para uma vida!
- Olha desculpa lá voltar à conversa, mas que foi que a velha te disse naquele dia?
- Não me recordo, não liguei grande importância ao que ela disse. Estava mais focado no Bife À Portugália.
A conversa continuou então por mais uma meia hora recordando aventuras da tropa, trocando informações sobre antigos colegas. Até que nos despedimos.
Falei com ele mais duas ou três vezes depois do filho nascer. A vida continuava a sorrir-lhe.
Por vezes, principalmente nos últimos tempos, lembro-me da Velha dos Anjos. A pergunta que sempre me ponho é: - Será que a velha conseguiu de alguma forma antecipar o futuro do Diogo, ou ele de alguma forma condicionou a vida dele pelas palavras que a velha lhe disse?
Seja como for, o importante é saber que ele conseguiu ser feliz. Esta é a parte mais importante de todo este episódio algo estranho. Não interessa se foi por antecipação ou por sugestão, interessa-me apenas saber que há pouco tempo através de um outro companheiro d’armas, tive notícias do Diogo e ele continua feliz.
Sobre o que a Velha dos Anjos me disse, apenas aqui revelo isto:
“- Quando pensares que tua vida está estável, que tudo está bem, vais ver a volta que ela vai levar… vai parecer um castelo de cartas a cair…”
Já passaram mais de vinte anos sobre aquele fim de tarde de Outubro de mil novecentos e oitenta e seis, na Igreja dos Anjos em Lisboa.
João
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
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11 comentários:
Muito interessante o conto.
E depois, embora não pareça, as relações com Alhos Vedros são muitas: velhos, anjos, premonições, tudo se encontra por cá de forma muito particular.
Só lhe direi que Alhos Vedros significa Homens Velhos e que a Padroeira é a Nossa Senhora dos Anjos.
O resto só revelarei quando contar o resto do que a velha lhe disse.
Moral da estória: Nunca se acomode na vida!
Luis Santos
Também o acho muito interessante e escrito por quem foi, ainda se torna mais apelativo.
Bem, então, quem foi que escreveu?
Hi everybody !
Saúde-se uma nova história, falando do fado da vida e do labirinto do coração. "Well done" CEAV, ou a apologia camoniana de que a vida é composta de mudança. Ou ainda a versão socrática do "conhece-te a ti mesmo", antes de conheceres os outros.
A escrita que parece realmente masculina e sentida ,pode bem ser "a song with a flavour" da liberdade ideal, latente na vida de todos nós.
Ou a quimera da alma gémea que "no God and no Devil" podem realizar...
Eduardo P.
Quem escreveu foi um grande amigo para todas horas, que se chama João. Eu limitei-me a enviá-lo.
Que bom o Eduardo voltou com os seus estrangeirismos!
Bem escrito!
Gostei!
Um boa surpresa esta história existencialista, propositadamente ténue na expressão de emoções, mas que fala (diferida ou indiferidamente) do labirinto da vida e da ilusão da redução do inesgotável universo a uma só pessoa.
O mundo lá fora..... ou o conflito entre o mundo do desejo e o mundo do intelecto !
Flávio Meireles
A tua estória, dá que pensar...
Gostei muito do que li, está muito bem escrito!
Em traços simples e concisos, contaste uma estória que me encantou e acima de tudo, me intrigou.
Pergunto, será tudo ficção, ou, como eu disse na msg que te enviei - que nas entre linhas de tudo o que escrevemos, está um pouco de nós?
Fico a aguardar a continuação da estória, pois parece-me, que ainda muita coisa, ficou por contar... :)
Beijos
Em todas as histórias há uma realidade, um tempo paralelo em que gostaríamos de estar ou de ter sido. Em todas as realidades há uma ficção: o outro de nós, manifesto ocasionalmente no acidente do mundo.
"A Velha dos Anjos" vive perto de todos nós...
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