A luz está boa para fotografar por volta das 5:30, pensei, vou até ás docas e com sorte até apanho a chegada de alguns barcos da faina.
Levantei-me, tomei banho, bebi um iogurte líquido e agarrei em duas maçãs. Fui ao escritório buscar a minha fiel D70. Calmamente verifiquei o material, não necessitava de tudo o que tinha na mochila, apenas lá deixei a 28-200 e a 18-50, o filtro polarizador… Ah! Os ND’s também davam jeito. Verifiquei o estado da bateria, a bateria suplementar, agarrei no tripé e encaminhei-me para o carro.
Como era bom ouvir os sons do campo aquela hora. Pus o carro a trabalhar, meti a cassete das “Valquírias”, Wagner era um bom companheiro para aquela hora da manhã.
Enquanto conduzia ia completamente submerso em pensamentos, quase conduzia em “piloto automático”, o vidro do carro ligeiramente aberto trazia-me aquela brisa da manhã que me fazia sentir vivo. As estradas quase desertas, apenas carros comerciais ou alguns carros conduzidos por jovens se cruzavam comigo.
Quando entrei na cidade, veio-me a vontade daquele café, mas aquela hora ainda nada estava aberto. Deslizei pelas ruas desertas, o som das ”Valquírias” transportava-me de novo para o mundo dos meus pensamentos mais secretos, faziam-me viver antecipadamente a magia dos momentos únicos que a D70 iria registar dentro em breve, o desenhar com a luz…
Já não me recordava como a zona da doca estava diferente, há muito que não vinha para aqui. Antes o barulho, o movimento era só causado pela descarga do peixe… agora são os bares. Ouviam-se ainda os rumores do Chill House, do Hip-Hop, … Havia pequenos grupos junto ás portas dos bares, as ultimas trocas de palavras, talvez a troca de números de telemóveis…
Deixei o carro um pouco mais afastado daquela zona, agarrei na mochila e dirigi-me para o cais, pelo caminho tirei a máquina e fiz uma ultima verificação se estava tudo bem.
- “Ganda bijectiva”! Hehehe!!! – Gracejou um jovem nitidamente ébrio.
- Meu! Tira aqui uma foto ao mano! – Continuou ele.
- Com material desse deve ficar à maneira!
Enquanto falava, o jovem dirigiu-se perigosamente para a orla do cais perante o olhar vítreo dos dois amigos que o acompanhavam.
- Eh pá tem calma! Volta lá para junto dos teus amigos que eu já te tiro um fotografia. – Disse-lhe enquanto me aproximava dele, tentando evitar a sua queda quase eminente á água suja e fria da doca de pesca.
-Tá tudo bem, tá tudo bem!! – Respondeu-me quando o segurei, e o ajudei a voltar para junto dos amigos.
Deixei-os em animada conversa, com o pedido expresso de não se aproximarem da beira da água.
Afastei-me contornando a doca, admirando o bailado das gaivotas que esvoaçavam sobre os barcos ancorados. Uma ou outra mergulhavam rapidamente, e levantavam depois trazendo no bico pequenos peixes. Ouvia o seu piar, sem saber se era de alegria ou de tristeza… pela ausência dos barcos que normalmente a esta hora estariam a descarregar a sua preciosa carga, permitindo ás gaivotas um festivo banquete.
Na doca com a água parada, quase espelhada onde se reflectiam as imagens dos barcos ancorados, reinava a tranquilidade. A luz suave do amanhecer dava ao colorido dos barcos alinhados um toque de magia, transformando aquela cena num dos tais momentos únicos que a minha D70 tinha por missão registar para a eternidade.
Comecei a fotografar, escolhendo os ângulos, conjugando cores e imagens. O mundo fechou-se para mim, apenas existia o que via através da máquina fotográfica… registando uma após outra aquelas imagens que compunham aquele pedaço de mundo. Ouvi um bater compassado na água, um pequeno barco entrava na doca impulsionado pelo remar vigoroso de um homem que aparentava idade avançada. Mas com os homens do mar, nem sempre o que se vê corresponde á verdade.
Click, click, e os remos ficaram parados no tempo…
Olhei em volta, e pela primeira vez reparei naquele homem com camisa de xadrez branco e preto com a cabeça coberta por um grosso gorro cinza. Olhava completamente absorto o mar longínquo, sentado numa pedra do cais. Figura sólida que se impunha perante tudo o que o rodeava.
Aproximei-me: - Amigo! Posso tirar-lhe umas fotografias?
- Umas fotografias! Para quê? – Respondeu-me sem tirar os olhos do mar.
- Tire mas é umas fotografias aí ás gajinhas que estão a sair das discotecas.
- Desculpe a minha insistência, mas é a si que gostava de fotografar. Miúdas como aquelas posso fotografar em muitos sítios, mas um olhar como o seu é difícil de encontrar.
Por momentos olhou-me, com aqueles olhos cinzentos emoldurados por aquele rosto parado, marcado pelo mar e pelo tempo.
- Que tem o meu olhar?
- OK, tudo bem! Olhe amigo eu não o quero chatear. Há pouco quando aqui cheguei, vinha a pensar em tomar um café, aquele cafezinho ali ao fundo já abriu… quer fazer-me companhia num café?
- Não obrigado! Não bebo café, mas… se quiser pode pagar uma mine.
Enquanto me dirigia ao café, olhei várias vezes para trás. Tinha receio que o homem desaparecesse, mas ele continuou imóvel.
Voltei com duas mines. Entreguei-lhe uma, que aceitou sem deixar de olhar o mar. E continuando assim perguntou-me:
- Ganha a vida com isso das fotografias?
- Não, faço isto apenas porque gosto. Trabalho numa fábrica.
- Então não deve ser um trabalho muito pesado, para estar aqui a um sábado a esta hora.
- Estou habituado a levantar-me cedo. Levanto-me todos os dias às 5:30.
- Você é que sabe, mas no seu lugar, eu estava era na cama a estas horas.
- Mas você também está aqui a esta hora. – Retorqui.
- Amigo, eu agora tenho todo o tempo para descansar. O “grilo” já não me deixa trabalhar… Eu bem que gostava!
- Você andava ao mar? – Perguntei-lhe
- Desde que me lembro não fiz outra coisa. – Respondeu-me, desviando finalmente o olhar daquele imenso azul.
- Então está aqui para matar saudades. – Comentei.
- Não! – Respondeu-me. – Não é por saudades, o mar não nos dá saudades porque está dentro de nós.
Ficamos alguns minutos em silêncio, olhámos juntos o mar.
- Não percebo! Não percebo porque é que você vem para aqui a estas horas tirar fotografias aos barcos, às gaivotas e até me quer tirar a mim… quando neste mundo há coisas tão bonitas para fotografar.
- Gosto das cores dos barcos, da calma da água, da suavidade do voo das gaivotas. E, quanto a si… gostei da maneira como olhava o mar. A admiração, o respeito, a cumplicidade…
- Não compreendo!... – Disse-me novamente.
- Isto aqui nas docas está muito diferente. – Respondi mudando de assunto.
- Pois, já nada tem a ver com antigamente.
Bebia lentamente a mine, saboreando cada golo enquanto se voltava para me olhar de frente, deixando sem guarda por uns momentos o seu mar.
- Tem filhos? – Perguntou-me.
- Tenho três, dois rapazes e uma rapariga. Ainda são pequenos, e você?
- Tinha quatro… Faz hoje anos que o mar me levou um!
Voltou àquele olhar parado, fixo no horizonte… a garrafa rolando entre as mãos e um silêncio que nada conseguia romper.
Respeitei o seu silêncio por mais algum tempo, não sabia o que dizer ou o que fazer. Fiquei também a olhar o horizonte, aquele imenso azul tão calmo, custava a acreditar que um dia tivesse levado a vida de alguém. Continuei a olha-lo, talvez em solidariedade para com a dor daquele homem. Não era capaz de imaginar sequer, a dôr de alguém que perde um filho. Que se deve dizer a alguém numa altura destas?
- Sinto muito!...
- O meu pai era pescador. – Começou então a contar-me. – Morávamos ali para as Fontainhas, éramos seis rapazes e a vida não era fácil.
Calou-se de novo, olhou em redor e gritou:
- Oh Álvaro! Vai ali ao Mário buscar três mines.
Voltou-se de novo para mim e continuou.
- O meu pai não queria que eu e os meus irmãos fossemos para a vida do mar, ele sabia como era difícil. Naquele tempo era assim, quando não dava para ir ao mar não havia para comer.
- E a sua mãe, que fazia ela?
- A minha mãe vinha todos os dias á lota, levava umas tecas de peixe para vender. Era varina, mas só isso não dava. Quando acabava de vender o peixe, dava um jeito à casa e ia buscar roupa para lavar. Ela lavava e engomava roupa para umas senhoras.
- Com o marido, os seis filhos, a lida da casa, o peixe e ainda a roupa a pobre senhora não devia ter descanso!
- Era difícil sim, ela era uma santa! Que Deus a tenha em descanso!... Oh Álvaro, então as mines?
- Aguenta aí Zé! Tou a chegar! – Ouviu-se por trás de nós.
O Álvaro era um personagem magro de idade tão indefinida como todos os outros homens do mar, magro, deslocava-se com dificuldade e apesar de o tempo estar bom tapava a cabeça com o capuz do blusão. Aproximou-se de nós trazendo as três cervejas.
Abrimos as minis e bebemos em silêncio, até que o meu novo amigo, o Zé, retomou a palavra:
-Aqui o Álvaro andava comigo ao mar, mas um dia bebeu demais… sempre se perdeu c’os copos! Ia para casa na motorizada, e teve um acidente. Passou quase um ano no Outão, e agora tem as costas numa miséria. Não pode fazer força nenhuma… tá como eu, para ele o mar também já acabou.
- Isso é mentira Zé! Ainda na semana passada saí com o Toino do Guito, e olha que estava a dar bem. Agora com os aparelhos novos é fácil, não te desorientas e sabes sempre onde há peixe.
- Prontos Álvaro! Sei que às vezes ainda vais ao mar. Mas já não é como dantes, já não é como dantes!
Enquanto os ouvia, deixei de lado a garrafa da mini já vazia e voltei a dar vida á minha D70. Bati algumas chapas àqueles homens, que trocavam palavras simples, falavam da faina, das aventuras do passado como se tivessem sido na noite anterior. Sentia-me completamente ignorado por eles, e ainda bem que assim era. Assim podia fotografa-los mais à vontade, sem poses… fotografa-los na sua essência mais pura, na simplicidade dos seus diálogos, das suas vidas.
De repente Álvaro despediu-se e afastou-se, arrastando um pouco os pés, corpo ligeiramente inclinado para a frente e para a esquerda. Caminhava com o balanço adquirido nos muitos anos de mar.
- O meu pai e a minha mãe não sabiam ler nem escrever. – Retomou o Zé quando o Álvaro se afastou.
- O meu pai sabia tudo do mar, da pesca, do tempo… mas queria que eu e os meus irmãos aprendêssemos tudo da escola. Mas aquilo era difícil!
O tempo parecia parado, enquanto ouvia falar o Zé.
- Eu tinha três irmãos mais velhos e dois mais novos, pode-se dizer que eu era o do meio. O que levava por todos, mas eu adorava os meus irmãos.
Um breve sorriso atreveusse-lhe no rosto, e os olhos ganharam um brilho especial.
- Os dois mais velhos nem a quarta classe fizeram. Fugiam da escola para ir apanhar isco, ou para dar uns mergulhos ali na doca das Fontainhas. O meu pai zangava-se com eles, mas o dinheiro que traziam do isco dava jeito, e eles acabaram por i para a faina ainda sem terem pelos na cara.
- Eles ainda são pescadores? – Perguntei.
- O mais velho é. É o mestre ali daquele barco, o “FLOR DO SADO”. Era ali que eu também andava com ele, antes do grilinho me atirar para terra… Agora o outro o Januário, esse morreu no Ultramar, assim como o Zé Júlio, o outro logo acima de mim… em dois anos ficaram-se lá os dois! Os mais novos é que foram espertos, ficaram longe do mar.
A voz sumiusse-lhe um pouco por entre as recordações, mas continuou a falar:
- O Zé Júlio era o mais esperto de todos. Nunca faltava à escola, aprendia depressa. Até teve ajuda dos gajos da Mocidade Portuguesa para poder ir para o liceu, teve uma bolsa de estudos. Era dos melhores alunos do liceu, sempre no Quadro de Honra. Mas quando estava quase a acabar adoeceu, apanhou uma pneumonia, depois piorou e acabou por perder o ano por faltas na escola.
- Mas ele não conseguiu justificar que tinha estado doente?
- Ele fez todos os possíveis, uma senhora ali do dispensário até o ajudou. Mas ele faltou muitos meses, e depois foi trabalhar ali para o escritório das conservas. Trabalhou lá pouco tempo, aqueles filhos da puta chamaram-no para a tropa… ele foi para a Guiné e lá ficou. Ele e o Manel João, o meu outro irmão morreram lá com dois anos de diferença.
O Zé levantou-se e caminhou pela beira do cais, acompanhei-o em silêncio. Parecia-me triste agora, o piar das gaivotas!
- Santa Rita! – Disse-me ele. – Santa Rita, era a santinha da minha mãe que Deus tem. Todos os dias ela acendia uma velinha à Santa Rita para que ela nos protegesse, mas nem Ela valeu aos meus irmãos!
E tanta fé que a minha mãe tinha Nela. Nos dias de temporal, ela ajoelhava-se e rezava-Lhe horas a fio para que os homens voltassem sãos e salvos do mar.
Parámos novamente e perguntou-me:
- Estou a chateá-lo com esta conversa?
- Não, não está! E se quer que lhe diga, acho que você estava mesmo a precisar de falar.
Meti a máquina na mochila, tirei um maço de cigarros do bolso, ofereci um ao Zé e tirei outro para mim. Fumamos lado a lado, em mais um daqueles silêncios que completavam a nossa conversa.
- Amigo Zé! Se me permite que o trate assim?...
- Esteja à vontade!
- E você? Como veio você aqui parar? Já me disse que o seu pai não queria que vocês seguissem esta vida…
- Eu sempre fui a sombra do meu pai. Ainda pequeno, quando ouvia a minha mãe a preparar-se para sair de casa para ir à lota, eu saltava logo da cama. Agarrava-me a ela e não a deixava, tinha de me levar. Eu adorava vir para aqui, ainda havia aqui uma parte com areia… não era só muralha como agora. Antigamente a chagada dos barcos era uma festa, os varinos a descarregar o pescado, corriam de um lado para o outro. A lota era mesmo aqui… você nem imagina a animação que isto tinha.
O Zé falava com entusiasmo daqueles tempos, explicou-me como era feita a descarga dos barcos com os varinos a transportar o peixe à cabeça em cestos. A venda do peixe na lota, o regatear dos preços, as discussões por causa de centavos… o lavar das redes e dos barcos, o arrumar das artes da pesca, finalmente o regresso a casa caminhando descalço ao lado do pai. Ouvindo o relato de como se tinham passado as coisas na faina, ou ouvindo estórias de pescadores e de monstros marinhos que por vezes atacavam os barcos e roubavam o pescado.
Falou-me também de todos aqueles personagens característicos que viviam em redor da labuta das docas, da pesca, e que povoavam as suas memórias de criança com todas as estórias. Umas reais, outras fictícias, por vezes até algo bizarras mas sempre presentes no seu dia a dia.
Ele vivia cada palavra que me contava, o seu relato era de tal forma real que eu me imaginava no meio de toda aquela azáfama.
- O meu pai, - continuou o Zé, - quando se levantava à tarde, comia qualquer coisa e levava-me com ele para a doca. Eu ainda não tinha idade para ir à escola, e já sabia amanhar as redes, sabia o nome de todos os aparelhos e para que serviam. O meu pai não queria que eu viesse para a vida do mar, mas gostava de me ter aqui com ele. Gostava de mostrar aos seus camaradas de faina tudo o que eu já sabia fazer. Tão pequeno ainda e já tão desenrascado nas artes da pesca.
Uma família de golfinhos nadava alegremente nas águas do Sado, arqueando o seu dorso sobre as águas agora prateadas pelos raios de sol que já ia alto. Também eles pareciam querer chamar a atenção para os tempos em que a ausência de poluição lhes permitia serem os reis do estuário do Sado.
- Quando fui para a escola, aquilo foi um castigo! – Desabafou. – Estar ali sentado o dia quase todo, a ouvir a professora falar. Aquilo dava-me sono! Ainda apanhei umas quantas vezes com a menina dos cinco olhinhos por estar meio adormecido nas aulas. Mas acabei a instrução primária, o meu pai disse-me que eu não podia ir para o mar se não a fizesse, que me arranjava era trabalho como trolha… isso eu não queria de maneira nenhuma.
- Mas quando acabou a escola veio logo para o mar?
- Não vim logo porque o mestre do barco disse que eu era muito pequeno, mas comecei a trabalhar para ele ajudando nas reparações dos barcos e dos aparelhos da pesca. Foi assim durante ano e meio. Depois um camarada do meu pai adoeceu e eu vim para o lugar dele, ainda andei muitos anos ao mar junto com o meu pai.
Dois pescadores aproximaram-se de nós, cumprimentaram-nos, perguntaram ao Zé o que era feito dele. Havia muito tempo que não aparecia por ali, isso não era normal nele. O Zé respondeu-lhe apenas que eram coisas da vida, os outros afastaram-se respeitando aquela resposta evasiva mas recordando-lhe que tinham saudades dele por ali.
O Zé não lhes respondeu, pediu-me mais um cigarro. Sentou-se mais uma vez numa daquelas pedras que decoravam o cais, cigarro seguro no canto da boca olhar cravado no chão esfregando lentamente as mãos ásperas curtidas pelo mar…
- Aquele da camisa encarnada é primo da minha mulher, conheci-a aqui… A mãe tinha uma banca de peixe na praça. Vinham aqui sempre comprar o peixe para vender lá. Foi daquelas coisas que só Deus sabe explicar, foi olhar para ela e ficar preso para sempre. Casamos cedo, ela tinha dezassete e eu dezanove… mal casei, fui logo bater com os costados na tropa.
- Felizmente consigo a tropa correu bem. – Respondi-lhe.
- Ah! Correu bem! Tive sorte, fui para a marinha. Não tive de ir para o mato e aprendi umas coisas sobre os barcos, as caldeiras, essas coisas… mas foram quase quatro anos de vida que perdi, a única coisa boa foi ter conhecido um pouco desse mundo aí fora.
- E talvez o que aprendeu também lhe tenha sido importante depois na sua vida do mar.
- Por acaso até foi, isto de ir ao mar não dá quase nada. E aquilo que lá aprendi deu para fazer uns biscates aqui na doca seca, dar uma vida melhor aos meus filhos. Tinha três raparigas e um rapaz, agora só as tenho a elas… Felizmente elas estão bem na vida!
Levantou-se com os olhos rasos de água, convidou-me para um café, pois eu ainda não tinha tomado o meu café e já estávamos ali há muito tempo na conversa.
Dirigimo-nos para um café que fazia esquina, uma antiga tasca que os tempos tinham mudado, o balcão de alvenaria com pedra em cima foi substituído por um de vidro e inox. As mesas e cadeiras de madeira pintadas de verde foram trocadas por cadeiras de metal zincado com costas e fundo de plástico branco, as mesas eram agora também de metal e com o tampo em fórmica branca. O chão manteve-se de xadrez mas o preto e branco passou a bordeaux e branco, as velhas fotografias de barcos de pesca e das velhas glórias do Vitória transformaram-se em quadros de paisagens suaves e espelhos com publicidade a bebidas, apenas a um canto se mantinha uma imagem de um santo para proteger os homens do mar.
Sentamo-nos numa mesa de onde se conseguia ver o rio.
- Mário, são duas bicas e meio bagaço… ou também quer um?
- Não obrigado, é só café. – Agradeci.
- As minhas duas mais velhas, estão na Escócia. A mais velha só fez o 12º ano, mas a outra tirou um curso de engenheira de computadores. Quando acabou o curso foi fazer um estágio para a Escócia e acabou por lá ficar. Arranjou um bom emprego para a irmã e levou-a para lá.
- Deve ter muitas saudades delas.
- Tenho pois! Mas elas vêm cá muitas vezes. A mais nova acabou agora o curso de educadora, vai começar já a trabalhar.
O Zé falava sem deixar de olhar para o rio. E eu perguntava-me a mim mesmo se ele iria falar do filho.
- O mar, para um homem como eu… é quase como a droga para esses rapazes que para aí andam agora! – Recomeçou o Zé. – Só que a mim, o mar nunca me tinha feito mal. Eu devia-lhe tudo o que de bom tinha na minha vida…
Enquanto falava batia consecutivamente com o cálice de bagaço já vazio no tampo da mesa.
- O meu filho também gostava do mar. Eu tentei sempre mantê-lo afastado, eu sabia que o mar às vezes é cão e eu tinha medo que alguma coisa lhe acontecesse.
As palavras saíam-lhe agora arrastadas, sentiasse-lhe o peso da emoção que carregavam.
Mário, o dono do café, não nos tirava os olhos de cima enquanto limpava sem parar a mesma zona do balcão.
- Só quando ele não tinha aulas, principalmente no verão quando o mar está mais calmo, eu o deixava ir algumas vezes comigo. E ele tinha jeito, a pesca estava-lhe no sangue… mas convenci-o a tirar um curso. Teve sempre boas notas, foi para engenharia de electricidade e mecânica. Diziam-me sempre que uma coisa sem a outra não funcionava…
- Ele tinha razão, cada vez mais um engenheiro tem de saber as duas coisas.
- …ele conhecia o mar, ele sabia onde havia peixe. O avô ensinou-lhe muita coisa.
Virando-se para mim Zé segurou-me no braço e continuou:
- Foi nas férias… Ele estava de férias, convidou três amigos para irem à pesca. Sempre que podia ele saía com o barco que era do avô, ele tirou carta de marinheiro logo que pôde. O barco do meu pai é um barquito pequeno com cabine, e ele uns meses antes tinha montado um GPS e uma sonda no barco. De qualquer maneira um dos que foi com ele é pescador, conhece bem toda a costa. Lembro-me de ele me dizer:
“- Pai agora com o GPS e com a sonda, já nem preciso do João do Isco. Posso ir á vontade e em segurança no barco do avô.”
O Zé pediu mais meio bagaço que bebeu de um trago, antes de continuar.
- Naquele dia disse-me: “- Pai fiz uma revisão no barco do avô, hoje vou sair para o mar com o Paulo, o Tavares e o João do Isco. Zarpamos a seguir ao almoço, vamos pescar á linha ao largo do Pinheiro da Cruz. O João do Isco diz que lá está a dar bem.”
Levantamo-nos da mesa, não o deixei pagar a despesa. O Zé nem reclamou, estava completamente alheado, parecia em transe. Paguei a conta, e as minis que o Álvaro nos levara enquanto o Mário, o dono do café me dizia:
- Bom homem o Zé, mas desde a morte do filho não é o mesmo!
Enquanto caminhávamos de regresso ao cais o Zé retomou o seu relato:
- Saíram para o mar depois de almoço, tal como me tinha dito iam fundear ao largo do Pinheiro da Cruz, e talvez até dormissem na praia. A mãe preparou-lhe o farnel, pataniscas com arroz de feijão, ele adorava aquela comida… Deviam regressar no dia seguinte!
- Que idade tinha o seu filho?
- Tinha 23… no dia em que devia voltar, próximo da hora de almoço, telefonaram-me da GNR de Grândola. Pediram-me para lá ir com urgência, que era relacionado com o meu filho Jorge. Esfriei todo, enquanto fui a casa do meu vizinho pedir para me levar a Grândola, a minha mulher que tinha aprendido com a minha mãe, acendeu uma velinha à Santa Rita.
As lágrimas corriam-lhe agora pela face, as palavras custavam a sair e eu nem sabia o que dizer ou fazer!
- Quando cheguei a Grândola, deram-me a notícia que o meu filho tinha morrido no mar. Tinha sido encontrado por um guarda prisional na praia do Pinheiro da Cruz, e com ele os três camaradas… eles não estavam bem, tinham sido enviados para o hospital de Setúbal. Apenas o meu estava morto, o mar tinha-mo levado!...
- Mas como aconteceu isso? – Perguntei-lhe.
- Mais tarde quando falei com o João do Isco, ele contou-me como tudo se passou:
“- Era já noite quando chegamos ao largo do Pinheiro da Cruz, o mar estava chão. Pensamos aproar á praia para passar lá a noite, estava fresco para ficar no barco. Enquanto combinávamos o que fazer começaram a levantar-se as vagas, foi de repente que o mar se alterou. Tentámos manobrar para meter a proa às vagas e sairmos dali, só que o motor parou e fomos apanhados por uma vaga de estibordo que virou o barco. Caímos à água! Depois foi a confusão… o mar estava grande, estávamos tão perto de terra que quase tínhamos pé… mas a corrente puxava-nos. Só me lembro de uma vaga trazer um dos remos do barco, que bateu na cabeça do Jorge… ainda o agarrei, mas depois “apaguei-me”. Não me lembro de mais nada!”
- Foi isto o que o João do Isco me contou. Disseram-me depois que com a pancada do remo o meu Jorge ficou inconsciente, por isso se afogou… ele nadava muito bem!
- Amigo Zé, percebo pouco do mar. Mas como pode o mar alterar assim tão rápido?
- O mar tem manhas! – Disse-me o Zé. – Naquela zona por vezes acontecem estas coisas, o mar está chão… levantam-se vagas, vagas a sério. Depois é coisa de um quarto de hora, meia hora no máximo, e tudo volta ao normal. É o “mar de leva” como lhe chamam os pescadores daqueles lados. Faz hoje anos que o “mar de leva” me levou o meu Jorge.
No silêncio mais reconfortante que consegui arranjar, pousei a minha mão no seu ombro. Não sei quanto tempo ficamos assim.
Foi então que o Zé se virou para mim e me disse:
- Já é tarde amigo, vá para junto dos seus filhos… aproveite bem o tempo com eles, afaste-os do mar! Eu ainda vou ficar a ver se consigo matar as saudades que tenho do meu!
Tirei da minha carteira um cartão de visita meu que entreguei ao Zé.
- Amigo Zé, se precisar de alguma coisa, nem que seja só falar e beber um copo telefone-me. E agora vá também para casa, ainda há muita vida pela frente e muita gente que conta consigo. Um destes dias venho procura-lo para lhe dar umas fotografias das que tirei hoje, e para ver como está.
- Obrigado amigo, sei que não vou precisar de nada… mas foi bom você ter-me ouvido. Deu para limpar um pouco a alma. Que Santa Rita o proteja e aos seus.
- Até um dia destes! – Respondi-lhe. – Acredite que venho procura-lo.
- Até depois, se Deus quiser! – Despediu-se o Zé já virado para o seu mar.
Afastei-me em direcção ao carro, ainda me virei várias vezes para trás. Queria certificar-me que o meu amigo Zé ainda lá estava.
Quando cheguei a casa, os meus filhos brincavam num terreno em frente á casa. Construíam uma cabana numa árvore, enquanto a irmã brincava em volta da árvore pedindo para subir. Abracei-os com um carinho e uma gratidão especial, por estarem ali, por fazerem parte da minha vida!
Durante três ou quatro semanas, a minha vida profissional e familiar ocupou-me totalmente. Apesar de me lembrar do meu amigo Zé, não tive oportunidade de o procurar.
Finalmente um sábado de manhã meti as fotografias prometidas num envelope, meti-me no carro e dirigi-me para as docas em Setúbal.
Parei o carro e dirigi-me aos barcos.
Um pequeno grupo de pescadores trabalhava nos barcos, ou na preparação das artes da pesca preparando o regresso ao mar. Mas do Zé… nem sinal.
Desci a rampa para o ancoradouro em direcção aos pescadores.
- Bom dia! Desculpem lá incomodar, mas há umas semanas estive aqui a tirar umas fotografias. Fotografei um camarada vosso, e prometi trazer-lhe umas fotografias para ele. Tenho-as aqui, mas não o vejo e não sei como o encontrar. Talvez me possam dar uma ajuda, ele chama-se Zé…
- Zés temos por aqui muitos. – Respondeu-me um homem forte com um blusão azul-escuro. – Mas se mostrar as fotografias talvez a gente possa dizer alguma coisa.
Tirei as fotografias do envelope e mostrei-lhe um retrato a preto e branco (15x22,5). Todos olharam, mas foi o do blusão azul-escuro que respondeu:
- É o Zé Lula, o melhor é falar com aquele que está ali em baixo a tratar do isco. Ele é que o conhecia melhor.
- Conhecia? – Perguntei com um mau pressentimento.
- É melhor falar com ele. Oh João, fala aqui com este homem, ele anda à procura do Zé Lula!
Avancei pelo ancoradouro em direcção ao homem que me tinham indicado.
- Bom dia! Sabe-me dizer onde posso encontrar o Zé?
- Não pode! Ninguém sabe nada dele. Há para aí um mês, no dia que fez anos que faleceu o filho veio aí, meteu-se no barco que era do pai e fez-se ao mar.
- Não compreendo!
- Não há nada para compreender amigo. Disse ao pessoal que aí estava que ia para o mar matar saudades do filho, ou juntar-se a ele.
- E ninguém o impediu?
- Nada! Ficou tudo parado! Eu é que fiquei cheio de remorsos de lhe ter reparado o barco depois daquilo com o filho. Primeiro perdi-lhe o filho nos meus braços por assim dizer, e depois reparo-lhe o barco para ele fazer isto!
- Você é o João do Isco?
- Sou sim senhor! E você que queria do Zé?
- Nada de especial, apenas falar com ele. Pelo que parece fui o último que falou com ele, estive aí na manhã que você diz ele ter desaparecido.
Saí do ancoradouro, fui sentar-me na pedra do cais onde o Zé estivera quando falou comigo. Olhei aquele mar, que dali se via comprimido entre a Tróia e a Arrábida. Deitei as fotos ao rio, para que a corrente as levasse ao legítimo dono. Talvez o espírito do Zé e do filho ainda navegassem naquele mar, ao leme do barco que os levara e não trouxera… o “VOLTA SEMPRE”!
Quando regressava ao carro, virei-me para trás e por momentos pareceu-me ver o Zé, de pé olhando o seu mar, tal como o tinha visto semanas atrás.
Veio-me então á memória um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen que assentava como uma luva, como homenagem aquele homem que eu tinha conhecido por tão pouco tempo:
PESCADOR
1
Irmão limpo das coisas
Sem pranto interior
Sem introversão
2
Este que está inteiro em sua vida
Fez do mar e do céu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo
FIM
domingo, 13 de janeiro de 2008
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3 comentários:
Apesar de ter mil e cem coisas para fazer, não posso deixar de elogiar o teu conto e desculpa a demora em o fazer. Parabéns. Gostei muito.
Vês como ainda te faltam muitas estórias para contar, fotos para tirar e quadros para pintar? Desejo que sejas muito feliz.
Ai, Zé...
Bom Texto!
O estórias precisa de mais Textos como este.
Luís Mourinha
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